quinta-feira, outubro 08, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
8 de outubro de 2009

AS FINANÇAS TÊM
SOLUÇÃO
PARA A CRISE?
(ou, tentando passar um pano no balcão)
Por Enéas de Souza


Para Obama pensar entre um memorando e outro

As soluções da crise estão aí. Todas as forças sociais têm soluções, se não idéias de transformação. Mas existe, na verdade, uma posição cardeal, uma posição que tenta fazer o mundo acreditar que ela é que possui a verdade. Trata-se daquela posição que se destaca pela superioridade aparente da riqueza, daquele grupo que manda pela pressão de um “lobby” nas votações decisivas do Congresso, daquela que cerca a Presidência de Obama com o FED, com o Tesouro e com National Adviser Council. Trata-se daquela que insiste em dizer que é a melhor, porque diz que sabe o que é melhor para a sociedade. Apesar desta força social ter levado os Estados Unidos e o mundo a uma vasta crise, ela continua a propor tudo igual, nada diferente das suas idéias. E claro, antigas idéias. De fato, o leitor já acertou, é o retorno do pensamento único querendo o retorno do mundo passado, aquele que terminou em 2007. Mas, não há como pensar que as Finanças poderão ser derrotadas assim no mais. Não é com uma simples vontade pessoal que Obama vai mudar o quadro, a correlação de forças. Obama só vai alterar a sua inferioridade política com as Finanças se conseguir armar energias sociais, preciosas, capazes de entender e agir, visando à interrupção de uma visão, de uma política e de uma política econômica, exclusivamente gerida pelo setor financeiro. E por quê? Porque as finanças é uma força social que no momento não tem proposta para além de suas próprias aventuras. Então, qual é a sua solução?

A solução das Finanças

1 - As forças financeiras estão buscando duas coisas. A primeira: elas estão tentando arrumar um tempo e dinheiro para conseguir retomar a dinâmica do processo econômico montada no movimento da especulação. A segunda: elas estão aguardando que o mercado produtivo pare de descer, que ele estacione e que o setor imobiliário retorne aos bons velhos tempos. A felicidade da casa própria. Só que esta solução já é passada, e não vai voltar mais. Na economia, uma solução despenca, pode retornar, mas volta subordinada a novas e diferentes articulações. Mas, mesmo que pudesse, o cenário continua devastador, o setor está em farrapos. E nesse ponto da recessão/depressão não há possibilidade de que o esquema anterior volte, regresse. As Finanças podem esperar, podem se desesperar, podem alucinar, podem tentar dar algum jeito de que sua visão de economia continue valendo, mas a economia não vai ceder, ela vai para frente. O tempo é implacável e degolador, ceifador e fulminante. As estruturas estão abaladas definitivamente. E, neste sentido, qual a mágica que as finanças têm de achar para conseguir ludibriar a realidade da ruptura definitiva do modelo que passou? Não é que não possa haver uma restauração da economia financeira. Mas numa outra pauta. A economia atual é como uma maçã que está apodrecendo, só uma parte pode ser comida, a outra tem que ser posta fora. Ou seja, hoje as finanças é uma sobremesa falida. Sua única chance é tentar aprisionar o tempo, fazer com que através do poder do Estado, a economia estacione.

2 - Tudo é problema na atual e persistente proposta financeira. Algumas perguntas podem nos orientar. Primeiro, pode haver recuperação com a manutenção da auto-regulação ou com uma regulação pálida e anêmica? Segundo, será que é possível que, com o seu estoque de títulos podres, de todas as ordens e que depende do governo para se sustentar, esta solução pode ser controlada sem que ameace a dívida pública – e, por fim, a moeda americana? Terceiro: será que auto-regulação vai atrair alavancagens vigorosas num momento em que todo mundo desconfia de todo mundo, num mundo que desabou recentemente por excesso de risco? Quarto: como vai ser recuperada e transformada e renovada a securitização? Quinto: quem serão os compradores dos produtos arriscados das finanças bichada? Sexto: quem vai segurar estes títulos duvidosos de instituições duvidosas?

3 - Mas, agora vem a questão mais visível. Não há como puxar do setor produtivo – pois todos os setores estão em reformulação – produtos capazes de montar, como foi o caso imobiliário, um processo de especulação. Commodities e petróleo e ouro já foram, e continuam a ser tentados. E o resultado é miserável, a especulação é sempre de curto fôlego até agora. O ouro talvez seja a mais consistente e mais promissora, sobretudo por causa da fragilidade monetária do dólar. Então, o esquema da vinculação especulativa das finanças com a produção fracassa devido tanto à fraqueza da estrutura produtiva americana como da ausência de produtos capazes de se tornarem o ativo real da vez. Acresce que um dos elementos do embaraço das atividades do “cassino” é, sem dúvida, a carência de participação do aplicador comum, porque este está quebrado, está tentando conseguir um emprego, está tentando pagar suas dívidas, está tentando salvar a perda de sua residência. Portanto, é preciso se convencer: o horizonte para as finanças, na tentativa de reconstrução do esquema antigo, é uma impossibilidade histórica.

4 - A impossibilidade histórica se baseia numa razão substancial e estrutural. A dinâmica econômica desta liderança e desta articulação contém uma inviabilidade de lógica econômica. O que foi desatado numa crise econômica não pode ser reatado, nem mesmo pelo Estado. O fulcro da questão econômica não é mais a salvação das Finanças. O fulcro é a recuperação da economia, cujo ponto de partida é o investimento e o emprego, e não a recuperação do antigo “status quo” do sistema financeiro. E para salvar a embarcação na zona dos furacões não se pode prosseguir a viagem, tem-se que mudar a rota. Esta viagem do neoliberalismo está podre. O que não quer dizer que o capital não possa desviar o seu andar, ter solução. O grupo do Obama já tem. Uma nova solução, mas uma solução de longo prazo. E não, esta demência do curto, como se fosse uma solução de lancheria, troca o refrigerante, passa um pano no balcão, etc. Mas, infelizmente, pelo triunfo passado, o mundo continua a girar em torno das falsas soluções das finanças. É como diz o samba: “quem demora, perde a hora”.

A festa das finanças revela sua aristocracia

1 - A embriaguez das finanças foi um porre daqueles. Mas, se a ressaca começar a ser curada, pode ser que aqueles espertos pensem um pouco que a questão não é de retomada da sua proposta. E sim de reformulação da sua visão econômica. Portanto, um reposicionamento da idéia de que tudo é ativo financeiro – ao menos, agora. Aquela idéia minskyana de que todos ativos – ativos reais, ativos monetários e, principalmente, ativos financeiros, tudo, tudo – era financeiro, vai ter que ser um pouco alterada. A mudança é uma mudança para o longo prazo, a reposição em cena do papel do ativo real como ativo real. O que viria através de uma retomada da indústria, da área produtiva, de transformações tecnológicas, seja da produção, seja da organização empresarial, seja do mercado de trabalho, inclusive de suas proteções sociais. Há a necessidade de um tempo econômico para os ativos reais. Ou seja, há que ter uma taxa de lucro prospectiva superior à taxa de juros. Ou dito keynesiamente: há que recuperar a eficiência marginal do capital face à taxa de juros da economia definida pelo Banco Central e hierarquizada pelos bancos privados a partir dessa taxa. Só o Estado pode, através de medidas fiscais e estratégicas, mudar o estado do carro que empacou. Mas...

2 - Mas, no corpo das empresas existe um obstáculo sério, um obstáculo grave: a governança corporativa. Assim, a forma atual de organização das corporações é que é o problema. Por quê? Porque como o André e eu temos salientado desde 2003, a governança corporativa é a maneira que as finanças encontraram para se infiltrarem na área produtiva e financeirizarem todo o setor produtivo. Ou seja, a empresa produtiva é na verdade além de um ativo financeiro, via ações, uma fábrica de produção não de lucros, mas de dividendos, sob a inspiração do famoso ROE (Return On Equity), a prioridade do valor acionário. Este império da geração de resultados monetários para valorizar as ações, inclusive por meio de aplicações financeiras, de empréstimos bancários para a compra das suas próprias, acaba como acabou, por levar a firma produtiva a um endividamento cruel, que termina por ser aprisionada na secura do crédito. Ou seja, sem a mudança das regras e da política da governança corporativa – que, ainda por cima, constrói uma divisão mortal para o funcionamento da empresa entre os proprietários das ações e os dirigentes do capital em funções – não há bailout possível. Porque, vejam, aqui temos duas contradições: uma a da transformação da empresa produtiva em empresa financeirizada; e outra, a da divisão que atinge tanto as finanças como a produção, de uma sociedade acionária onde o proprietário do capital não é o condutor do capital. E que numa sociedade moderna, o condutor dele, isto é, os executivos têm o domínio da situação e da empresa e, é espantoso, de uma participação positiva nos seus resultados, mesmo quando estes são negativos.

3 - Vimos na crise da Nasdaq, na crise das empresas ponto com, na crise da e-economy, na crise de 2001, como na crise do sistema financeiro nacional e mundial de 2007, a forma como houve a quebra, a falência, a bancarrota, a profunda crise da corporação. Crise que ocorreu sem que os executivos perdessem não só a suas remunerações como os seus bônus. De outro lado, dada as formas acionárias vigentes, os shareholders, os acionistas, não têm poder para alterar a conduta destes dirigentes, seja através dos conselhos deliberativos, seja por meio de auditorias, seja por intermédios de consultores, seja inclusive pela introdução de representantes dos acionistas na dinâmica das atividades, seja por conseqüência de um efetivo aumento de controle, etc. Nada deu certo, porque quem dirige tem o poder imediato das corporações. E como são estes os operadores efetivos, mesmo na crise, eles tiveram sucesso nas suas carreiras. Dizendo com rima pobre: tiveram o bônus e não arcaram com o ônus. O que dá para ver que estes, os executivos, são os integrantes da verdadeira fração de classe que dirige a classe dos financistas, a aristocracia do capital.

A eutanásia das finanças

1
- Na esteira de nossas considerações, a primeira proposta seria que as Finanças recuassem diante da tentativa de recuperação de sua situação anterior. E abandonassem o pensamento de retomarem a dinâmica econômica centrada na economia financeira. E que, politicamente propusessem, estando ainda na direção política do Estado, uma transformação da atual política econômica. O propósito central: um plano de estímulo fiscal amplo, audacioso, mais sólido, robusto para a esfera econômica. Seria a clara percepção de que a tarefa indispensável para a expansão da sociedade é a recuperação do investimento e do emprego.

2 - Para isso, teriam que alterar o papel do Estado. E fazer com que os recursos financeiros deste, sua capacidade de endividamento, sua capacidade de liderança fosse retomada, em benefício da produção, como nos anos trinta. Desta forma, só assim a alavanca de Arquimedes do Estado estaria catapultando um novo mundo. Obviamente, as finanças teriam que passar forçosa e até forçadamente a definir o movimento do crédito na direção da produção. Mas, na competição presente dos mercados financeiros, impossível. Sem uma alteração da relação atual entre a taxa de lucro esperada e a taxa de juros, a alavanca nem sairia do sono. E só, sob a intervenção do Estado, seria possível bloquear a tendência atual do desequilíbrio desta relação permanentemente em favor da taxa de juros. Dito de outra forma e secamente: vamos parar de favorecer a renda financeira. Chegamos a um pensamento cínico: seria até uma forma de forçar o capital financeiro a pensar que a órbita produtiva traria, no futuro, a salvação de novas especulações. Como isso não é uma proposta de solução imediata e que permita o retorno da volúpia dos mercados financeiros, não há pensamento viável para atender esta proposta.

3 - O Estado pode realmente intervir, mas não sob a inspiração da área financeira. Precisaria a esta uma capacidade de compreender – não os mercados – mas a economia capitalista no seu processo dialético entre as finanças e a produção. O que parece que até agora os banqueiros, os investidores e aplicadores financeiros, os financistas estão longe de compreenderem e pensarem. Não parece verídico e nem crível que a idéia de Keynes possa ser posta em prática: a eutanásia dos rentistas. Os banqueiros não são politicamente capazes de propor uma nova idéia de Estado, nem são aptos a passarem de financistas a estadistas. Com isso, perde-se, neste momento, a necessária transformação da lógica econômica do capital, substituindo a ênfase no financeiro para a produção. Embora, seria ótimo para a sociedade que os financistas pensassem na sua eutanásia, a transformação da economia tende a ficar estacionada até uma modificação política de envergadura. De fato, salvo se a atual recessão fugir do controle e passar à depressão. Pode ser que entre eutanásia e o retorno da especulação, haja um espaço para a política encontrar alguma solução. O que é concreto é que a sociedade vai empurrar as forças sociais para algum caminho; e o melhor é que ele seja negociado, visionado, pois o futuro já nos abana, mas pode ainda estar muito longe: ampliação das tecnologias de informação e comunicação, renovação das tecnologias e da produção de energia, introdução de tecnologia e de soluções políticas e econômicas para as questões ambientais. A agenda, de uma forma ou de outra, não pode deixar de contemplar uma fundamental discussão sobre o futuro dos direitos sociais, dos direitos civis e da proteção social do trabalho.

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