quinta-feira, outubro 15, 2009

A CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
15 de outubro de 2009

A INVENÇÃO
DA NOVA ECONOMIA
(ou duas estruturas à procura de um Estado)
Por Enéas de Souza

Parece incrível, mas no jardim do neoliberalismo não surgiu ninguém para perceber que esta terra está esgotada. Como é que não perceberam que estamos metidos numa crise de que alguns chamam da construção de um novo paradigma. Estamos numa crise do capitalismo. Repito: CRISE DO CAPITALISMO. Isto quer dizer que não é o aumento da rentabilidade de um banco, o aumento na pontuação de ações, nem uma recuperação na área produtiva que vai definir a verdadeira recuperação da economia capitalista. Podemos ter um leve crescimento, podemos ter até uma aragenzinha, quiçá um vento animador. E no limite, quem sabe, chega um azul no céu cheio de nuvens; mas tal evento não quer dizer que as coisas se firmarão num crescimento sustentável, prolongado, num crescimento firme e renovado de longo prazo. Esta crise é uma crise do capitalismo. – e, portanto, uma crise estrutural. E só se revolve uma crise estrutural mudando a estrutura da política e da economia. Parece que não se acredita, mas essa coisa de estrutura é para valer.

A falência do lucro produtivo

Esta crise estrutural do capitalismo é uma crise do capitalismo financeiro. E o capitalismo financeiro é uma combinatória dinâmica das órbitas produtiva e financeira, que no presente, no caso atual, tem a hegemonia desta última esfera. E, portanto, quando dizemos que é uma crise do capitalismo financeiro, não queremos afirma que é uma crise das finanças. A palavra assegura que é uma crise tanto das finanças como da produção. Ou seja, não dá para pensar que o aparente retorno de um ligeiro crescimento de uma ou de outra órbita dará consistência a retomada de toda a economia capitalista. O que vai fazer a diferença, o que vai dar a alternativa, é uma mudança das duas estruturas e do enlace entre elas. É preciso mudar tanto as finanças quanto a produção. Ou seja, é porque se romperam as duas estruturas que este capitalismo está capenga, que ele carrega consigo duas cicatrizes que podem ser terríveis. Elas identificam a necessidade de uma alteração, a exigência de uma cirurgia plástica. Dito de outra forma: é preciso transformar tanto a esfera financeira quanto a produtiva. O problema é que este descarrilhamento atual das órbitas impede que haja uma combinatória adequada para que o capital se expanda. Uma combinatória que ajuste os apelos da renda financeira com aqueles do lucro produtivo. Destaca-se, então, que o verdadeiro regulador do sistema capitalista é a relação taxa de juros/ taxa de lucro esperada. Regulador que foi alterado para uma prioridade do juro e da renda. E esta prioridade levada às cegas, por uma política monetária e financeira, que sem inovações e repetida mecanicamente, só poderia chegar aonde chegou, ao abismo da Grande Recessão.. Logo, há que provocar a ressurreição da combinatória dialética do capital financeiro. Só que, neste ponto do caminho, o que existe é uma paralisia das atividades econômicas, exatamente pela falência da taxa de lucro esperada.

As finanças se olham no espelho. E se acham lindas!

1 - A crise financeira mostrou para os financistas o verdadeiro outro lado da Lua da economia. É que o circuito das finanças não é infinito. E que havendo duas crises, a financeira com a inflação de ativos e a produtiva com uma super-acumulação de capital, as eventuais crises isoladas, e domesticadas, da primeira órbita foram superadas. E desembocaram, como rios num oceano, numa fratura da economia que combinou a derrubada das finanças com a queda da produção.

2 - O que emperrou na área financeira? Esta desabou pela explosão de uma dinâmica econômica que se amparava numa auto-regulação irresponsável, numa alavancagem elevada, numa securitização inchada de inovações de ativos e de derivativos perigosos em profusão, e numa propagação de negócios garantida por uma atividade enganadora das agências de ratings. O clímax de todo esse movimento foi uma relação turbinada, mas fulminante, entre o setor financeiro e o setor produtivo, relação que se tornou desnuda nos defaults das hipotecas imobiliárias. Logo depois, o incêndio atingiu toda a vasta gama de inovações financeiras, que transformadas em ativos tóxicos, trouxe, no arrastão, os bailouts e as criações de linhas de liquidez do FED. Foi um caminhão de títulos podres. Ora, com isso, o crédito foi considerado uma flor a ser cuidada e regada com muito cuidado. Tão cuidada que escasseou. E o aperto de crédito não foi superado, nem entre os bancos entre eles e nem dos bancos com o setor produtivo. E obviamente, o crédito de longo prazo, aquele que permite os investimentos produtivos e que mudam os padrões da estrutura da produção, ficou interrompido, ficou em suspenso, como um retrato numa câmera digital que não funciona.

3 - Ou seja, a órbita financeira bebeu demais, se olhou no espelho e se achou linda. Mas inebriada, cambaleou e caiu se desmanchando como um vestido vermelho na praça dos bancos. Logo, há que tomar algum remédio, alguma medicina. E qual a receita? Como costumavam dizer os financistas internacionais para o Brasil – só que agora têm que dizer para si próprios – o remédio vai ser amargo, porém necessário. Antes de tudo, é indispensável que o setor bancário tenha que ter uma estrutura de capital capaz de suportar o risco de suas atividades financeiras. Por isso, para que essa premissa funcione corretamente, trata-se, em primeiro lugar, de regular o setor; em segundo, de fiscalizá-lo; em terceiro, de sancionar as punições adequadas; em quarto, de promover uma nova arquitetura financeira; em quinto, de conceber novas regras da contabilidade; em sexto, de definir as condições de articulação do setor produtivo e do setor financeiro – portanto, de definir o crédito; em sétimo, de acabar com existência das agências de ratings, etc. Ou seja, o que está em jogo é uma re-estruturação das finanças. Com este pensamento estamos falando no papel dos bancos, na existência ou não de bancos de investimento, no papel das seguradoras, no papel dos agentes imobiliários, etc.

4 - Chegamos finalmente à estrela das finanças e da mídia, o molho do pudim: a questão do bônus dos dirigentes das finanças. Na verdade, o que está em debate aqui é a governança corporativa, cujo nó conflitivo opõe os acionistas aos executivos. Desta contradição sai um resultado prático que acentua a predominância invulgar destes últimos. Naturalmente que os presidentes das corporações, os CEOs, falam da excelência desta fração de classe, inclusive a qual pertencem. Mas, tal defesa incondicional torna a viagem do capital financeiro mais inquietante socialmente, porque nesta turma, nesta cesta de ovos dourados, estão os financistas que quebraram os bancos e saíram com muito dinheiro no bolso.

5 - Toda a estrutura do setor financeiro que se fragmentou é como taça de cristal, rompeu-se e não tem conserto. Estas peças podem ser usadas descaradamente, mas não terão nunca o brilho de outrora. É preciso re-estruturar toda a área das finanças; sem uma remodelação a crise da economia não terá solução duradoura. Ficaremos com recuperações mascaradas e de novo na dança dos ativos podres. O pior é que na cauda da crise financeira e no rasto das assistências do Estado vem a face de um combatente que pode ser torpedeado, o dólar. É imperioso re-estruturar a órbita das finanças.

Qual a produção que vai emplacar?

1 - Dizer que o setor produtivo superacumulou capital, já falamos a exaustão nesta coluna. Linhas acima, inclusive. Todavia, o que é preciso não é queimá-lo simplesmente, é fundamental renovar a estrutura tecnológica que está inscrita nas empresas. Porque? Em primeiro lugar, porque no processo de competição entre as corporações cabe dar andamento a revolução tecnológica, já começada nos anos 70 do século passado, através das novas tecnologias de comunicação e informação. Estas reformularam fortemente vários setores, inclusive o setor de bens de capital, com a criação da mecatrônica. Foi decisivo porque atingiu os mecanismos das máquinas instaladas em toda a estrutura da produção. Porém este setor está, no momento, com o seu desenvolvimento suspenso em função da especulação financeira e da crise da estrutura produtiva, que obviamente afeta o referido setor.

2 - De outro lado, uma nova realidade tecnológica entra em pauta e faz-se presente: a exigência de renovação da infra-estrutura energética, que afetará toda a economia. Ou seja, estamos transitando por uma área onde existem as perspectivas múltiplas do pré-sal, dos biocombustíveis, das energias solar, eólica, etc. Dando seqüência as questões tecnológicas, podemos constatar que os problemas ambientais trarão também a possibilidade de novas indústrias neste setor, o que requer uma transformação profunda na citada estrutura produtiva. Como vemos o que está em jogo passa pelo “envelhecimento”de indústrias do tipo da automobilística que foram as grandes vedetes do século XX. Como diz Carlota Pérez as empresas inovadoras e predominantes e que assumirão a liderança produtiva serão a Microsoft, a Google, a Yahoo e não mais a GM, a Ford, a Chrysler.

3 - É indispensável derrubar os obstáculos para que estes setores avancem e avancem incisivamente. E a partir destas revoluções tecnológicas da informática e da energia desencadear, como um punhal num duelo, outras alterações tecnológicas. E com tão vigoroso ímpeto que este conjunto de mutações tecnológicas acabaria por se constituir na alavanca de uma dinâmica ascensional cíclica da produção. Pois, estrutura e ciclo são noções que se entrelaçam e proporcionam o desenho daquilo que pode se caracterizar como uma mudança no padrão de acumulação de capital. Ou seja, só neste momento é que a economia teria entrado num processo de renovação e desenvolvimento. Para uma crise estrutural produtiva precisa-se efetivamente de uma transformação no padrão de acumulação. E a chave desta mudança está na introdução de inovações tecnológicas.

Será que o Leviatã vai orquestrar a música?

1 - A questão é, portanto, reconstruir o sistema financeiro e dar seqüência a uma mudança estrutural na esfera da produção. Pela frase vemos a inquietante e valorosa dimensão da tarefa. Metamorfose nas finanças, metamorfose na indústria. Mas, o centro desta mutação não é apenas como tem ocorrido com o FED e o Tesouro Americano: apoiar intensamente as finanças, gastando uma fábula. Mas, o importante é, sem dúvida, dispor o Estado para entrar pesadamente na economia. Qual o ponto? Propiciar uma elevação significativa da eficiência marginal do capital, De tal modo que haja um fluxo de recursos para a aplicação no setor produtivo. Estará escrito em toda parte, o principal da economia é o investimento. E para que este processo se torne reiterativo, repetitivo criativamente, o ponto que marca uma nova época é a transformação do Estado. E é preciso que se mude muita coisa. Cabe ao Estado dar uma nova coloração nas relações com o capital, com o trabalho e com a sociedade. Trata-se de assumir o resultado da dinâmica das alianças sociais e políticas, que desembocarão no Estado, com uma outra proposta de organização do próprio Estado e com uma política econômica distinta da atual.

2 - Isto quer dizer o seguinte: um dos objetivos da reforma do Estado terá que ser a mudança do domínio das finanças sobre dois de seus órgãos preciosos, a Fazenda e o Banco Central (nos Estados Unidos, o FED e o Treasury). Pois, eles terão que estar ordenados a uma estratégia subordinada a uma nova política econômica. Evidentemente que esta não vai mais estar centrada na política monetária, cambial, financeira e fiscal, que favorecia as finanças. O objetivo deve ser trocado. A inversão de prioridade buscará um projeto de constituição de um novo padrão de acumulação. Finca-se um apoio na revolução já em andamento das novas tecnologias de comunicação e informação. O Estado cumprirá a tarefa de preparar, de favorecer, de trabalhar para a conexão entre as finanças e a produção. Tudo neste ponto é imperioso: o estabelecimento das funções e finalidade do sistema financeiro, a concepção de uma estratégia que norteie à constituição de um novo padrão produtivo com um novo patamar tecnológico a infra-estrutura energética e com um outro encadeamento das indústrias por mutações tecnológicas neste novo padrão. O que significa dar prioridade ao investimento e ao emprego. E para alcançar estas conseqüências o Estado terá que recuperar uma autonomia em relação às Finanças e liderar as transformações da estrutura produtiva e financeira, pondo em questão a organização da empresa capitalista, a governança corporativa, Como resolver esta contradição entre o acionista e o executivo, o proprietário do capital e o capital em funções será uma tarefa que não se vislumbra ainda uma solução satisfatória. .

3 - O decisivo nesta aventura é que o Leviatã tem que ter um controle democrático, porque um Estado apenas forte, e totalmente voltado para o capital culminará num Estado mais autoritário, quem sabe ditatorial, e que conduzirá a sociedades a conflitos amargos e destruidores. Há que encontrar forças sociais que assumam o Estado e bloqueiem essa insanidade de apoio ilimitado às finanças e que canalizem forças para a renovação da esfera produtiva, tratando tanto de reformular a ligação entre essas duas esferas, como proporcionar ao setor do trabalho o usufruto dos direitos sociais e civis.

4 - O caminho tem um trajeto marcado, a constituição de uma nova divisão internacional do trabalho, o que fará a mundialização entrar numa nova fase. O capital, se isso acontecer, terá encontrado um novo estágio para o seu desenvolvimento. Mas, como já vimos, há tantos obstáculos para lá chegar. Re-estruturação das finanças, re-estruturação da produção, re-estruturação do Estado. Caminhos que não se fazem sem sangue, sem batalhas, sem dores, sem adversidades e sem irracionalidades. Mesmo porque, como uma estrada que está em construção, novas pedras terão que ser removidas. A dinâmica econômica e social faz como o mar, traz à praia da sociedade, novas e tantas questões. O que se nota é a necessidade de um novo acordo social, capaz de fazer avançar um novo Estado e um novo projeto de sociedade, e, sem dúvida, a expansão da própria democracia. Tudo isso faz parte da história desse momento. E embora as condições estejam dadas, a história está livre para ser construída. Os habitantes do planeta estão entrando numa era da invenção. Pois, enquanto não se der curso aos engenhos, a economia e a sociedade estarão entre a paralisia, a desordem, as explosões sociais e as soluções de força. Há que inventar para que as estruturas achem o seu novo Estado. A economia vai assim, mais uma vez, estar na mão da política.

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