quinta-feira, outubro 01, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
1° de outubro de 2009

SHAKESPEARE E O G-20
Por Enéas de Souza

Cirurgia na ordem do mundo

1 – O encontro dos G-20 serviu para mostrar uma cisão, uma fissura, uma separação entre a realidade geopolítica e a geoeconômica do mundo. De um lado, dada a crise financeira internacional e seus desdobramentos, o ponto essencial é a ascensão de países como a China, o Brasil e a Índia no cenário internacional. Só que esta ascensão se marca apenas no plano econômico. Porque de outro lado, as instâncias políticas continuam praticamente intocadas com a liderança americana. De um lado, a economia trouxe o G-20 e a política ficou no G-8, para dizer simplificadamente.

2 – Quanto às modificações econômicas, elas querem dizer duas coisas. A primeira é que embora os Estados Unidos seja de fato o elemento fundamental da dinâmica econômica, ele não segura mais sozinho o coração, isto é, o movimento da economia do mundo. Certamente, o contrapeso imperioso é a China, mas os demais países do G-20 fazem parte deste contrapeso. Sim, menores que a China, é verdade, contudo presentes. Portanto, no barco desta crise, estamos todos em busca de um novo porto, de uma nova mundialização. O que significa dizer que a dinâmica neoliberal se foi. E que a economia capitalista começa a dar-se conta, muito lentamente e a contragosto, que a sua saída passará pela tentativa de encontrar uma dinâmica diferente. E que seja um relançamento das múltiplas economias nacionais, em sintonia com uma transformação da própria economia internacional. Para que isso aconteça, é preciso que sejam ouvidos todos. Pois quanto mais forem discutidos e debatidos os temas que embaraçam o mundo econômico, mais será possível alguma coordenação geral. Não há saída sem a participação de todos, mesmo nos obstáculos, nas barreiras e nas trapaças da decomposição atual do sistema capitalista. Pois estamos num processo de avanço do capital, tanto no nível das nações como do planeta. Capital é crise. Mas é também concentração e centralização, que é relançamento da dominação, mas num outro patamar superior. Dominância americana evidentemente, secundada nos dias de hoje pela China. O que vale dizer que a resistência da esquerda, no momento, pode fazer com que a relação de forças seja bem menos contundente do que o triunfo do capital no liberalismo.

3 – Porém, quanto ao segundo aspecto, no nível geopolítico, a questão não pode ser posta da mesma maneira. O certo é que aqui o G-8, para não dizer o G-2 é quem decidirá, e, os outros, serão diplomaticamente – se forem – consultados minimamente. A exceção, pela tradição, é a Europa, que pode ser convidada a participar em algumas ações diplomático-político-militares, mas sempre sob o comando americano. Na realidade, a estratégia, a decisão e a ação virão dos Estados Unidos. E a China passa a ocupar um plano distinto, que já vinha ocupando no final do capitalismo neoliberal, sobretudo por causa de sua atual importância econômica. Talvez seja uma primeira mudança, mas é ainda muito tênue em relação ao poder americano. As demais nações podem até serem consideradas quando as questões passarem pelas zonas regionais onde tem vigência. E onde são árvores que dão sombra. No mais, é fatal, serão ignoradas. Deve-se dar um pequeno relevo, no campo nuclear, com pequena exceção, à Rússia. E com essas observações, nota-se, que a crise econômica e a ascensão dos emergentes não provocaram notórias mudanças na política global.

4 – Assim, os acontecimentos da Assembléia Geral da ONU com a presença nela de Obama; a declaração da França, Inglaterra e Estados Unidos contra o Irã; a transferência do centro da guerra no Oriente Médio do Iraque para o Afeganistão; e declarações explícitas de autoridades de várias nações, inclusive dos emergentes, dão a perceber que a condução política continua limitada e restrita. Os Estados Unidos, como os verdadeiros líderes, continuam tentando, mesmo com a pata econômica operada no menisco, organizar paralelamente uma nova ordem política, visando manejar adequadamente a questão nuclear, ao mesmo tempo, que tentam impor, cautelosamente, pelo lado do poder político-militar um constrangimento ao novo poder recém chegado, a China. Como disse um comentarista, a paranóia americana que tinha antigamente como inimigo o Japão, agora encara a China como esse objeto assustador. Velha técnica da elite dos Estados Unidos. Gritam, esperneiam, apontam a nação ameaçadora, para melhor combatê-la. Obviamente, o mundo hoje é mais complexo do que essa simplificação, e o que começamos a ver é a elaboração de uma nova gênese não só da ordem política como da ordem econômica. De qualquer forma o que se percebe é que os americanos ainda se põem, ainda se colocam como aqueles que falam pela “multilateralidade” para dar um sentido ao mundo em construção. Mas, a política tem uma relação dialética com a economia. E a pergunta é essa: a colisão de interesses do G-20 com as decisões do G-8 (G-2) vão produzir apenas a fissura destes dois Gs, ou haverá uma geopolítica e uma geoeconomia, absolutamente distinta, ainda não vislumbrada e assinalada? Pode-se perguntar mais pragmaticamente: que transformações vão ser possíveis a partir da instalação do G-20? Ou inquirir ainda: a fenda constatada agora não imporá uma nova caracterização geral, de uma forma ou de outra?


5 – O mundo, sob o comando dos Estados Unidos, sofreu uma cirurgia, onde o resultado é a gênese de dois tabuleiros - ou dois pólos, se assim quisermos dizer. Num deles, no tabuleiro econômico, a crise trouxe à praia das nações, com os destroços do crash econômico, o chamado G-20. Todos são soldados esfarrapados da financeirização. Uns com os uniformes esburacados, outros com rasgões. Nesse cenário, os países desenvolvidos foram os mais afetados, por exemplo, os Estados Unidos e a Inglaterra; e os emergentes, como novos atores, seguem em melhor estado, principalmente, a China. Nisso não contamos os países fora do teatro dos G-20, como os africanos, pobres maltratados da mundialização financeira e da mundialização bushiana/cheneyana. Mas, toda essa cozinha, toda essa feijoada cairá também no tabuleiro político. Provavelmente, ao longo dos novos tempos, o calor do G-20 acabará forçosamente por alterar aspectos profundos da aparente e intocada geopolítica contemporânea. Certamente mostrando novas forças, novas lâminas, resultados subterrâneos da operação econômica recente.

O Estado tem um Minotauro dentro dele

1
– Política é conversa, é sondagem, é proposta, é negaceio, é sedução, é chantagem, é ideologia, é compra, é venda, é ameaça, é invasão, é guerra. Clausewitz já falou: a guerra é uma outra forma de política. Hoje, o céu tem novas nuvens, pode-se dizer que a economia é uma outra forma de política e uma outra forma de guerra. E por isso, o G-20 é economia, mas é também política. E cada vez mais se constata que apesar de ser uma grande derrotada, as finanças continuam um império, uma “ditadura”, como uma vez disse François Chesnais. Porque? Simplesmente, porque as finanças, usando uma ideologia e uma política neoliberais, conseguiram aprisionar o Estado, tanto nas suas armações institucionais como na sua política econômica. Institucionalmente tudo foi radical e eficiente. Fizeram, para melhor domínio, uma divisão dentro do Estado entre a Fazenda (Tesouro, nos Estados Unidos) e o Banco Central, para tornar este independente ou autônomo. Desta forma, acabaram com a hegemonia política da política sobre a economia. Na verdade, a manobra foi um sucesso, a hegemonia financeira acabou politicamente por destruir a autonomia e soberania do Estado. A soberania até o início da crise foi das Finanças, usando em seu benefício o poder do Estado.

2 – Levará muito tempo para nos darmos conta do extraordinário desta vitória das Finanças sobre as demais forças sociais, inclusive nesta vasta vitória ideológica que pôs o financeiro como a sabedoria da economia e da política. A tal ponto, que sob esta astúcia, o financeiro proporcionou ao capital algo fantástico, a idéia de que a saúde, a educação, a segurança, os serviços públicos, inclusive as penitenciárias, seriam mais bem organizadas pelo serviço privado do que pelo próprio serviço público. Como a população se deixou enganar! Vejam o monumental fracasso do capital na questão da energia elétrica nos Estados Unidos e o fracasso algumas privatizações no Brasil. Porém, o néctar deste banquete era a idéia de Estado Mínimo, onde se conseguiu vender que tanto as privatizações como as terceirizações melhorariam os serviços públicos e eliminaria a corrupção. (Quá, quá, quá! Ao escrever frase anterior, ouço gargalhadas espalhadas pelo mundo!). O Estado tinha que sair de tudo. Houve um gênio, do estilo Fukuyama, que propôs que o Estado tivesse a sua administração privada. Como os humanos são doidos! Basta só pensar um pouquinho: o que seria o Estado privatizado no meio desta crise americana? Um pandemônio certamente! Olhemos só mais um exemplo: a crise financeira nos Estados Unidos, de fato, se tornou irremediável e antecipadamente incontornável, quando o secretário de Estado, Paulson, que tinha sido da Goldman Sachs, permitiu a quebra do Lehman Brothers, concorrente direto da primeira, levando a uma crise sistêmica absolutamente catastrófica para os Estados Unidos e para o sistema financeiro. Não que a crise poderia ser abortada, mas ao menos poderia ser tratada de maneira distinta.

3 – Tudo isso para dizer que o Estado com a hegemonia das Finanças, a divisão da Fazenda e do Banco Central, a visão de Estado Mínimo, com os serviços e direitos públicos privatizados, não pode reagir comandando politicamente a crise. Teve que reagir apenas financeiramente. E de que maneira? Criando nos Estados Unidos os famosos e substanciosos bail-outs, deixando parcos recursos fiscais para projetos na área produtiva e na área social, salvando os bancos das bancarrotas e não impedindo que os cidadãos perdessem casas, carros, empregos, encharcados que estavam no endividamento financeiro do crédito sem controle da sociedade, do público e do Banco Central. Por isso, o Estado não pode assumir um papel de liderança no processo. Barack Obama está preso nos fios deste labirinto político e financeiro. Michele não consegue lhe dar o fio de Ariadne para fugir do Minotauro das Finanças. O Estado manda muito, manda muito diante de cidadãos comuns, mas não consegue mandar nas Finanças (Onde está a regulação indispensável do sistema financeiro?).

4 – Pois, o que as Finanças conseguiram fazer foi deslocar o poder do Estado para fora dele, para as Finanças que, impondo o Estado Mínimo e dividindo o Estado entre Fazenda e Banco Central, impede que o Estado, numa crise, tenha uma resposta decisiva, canalizando um comando social na direção do investimento produtivo e do emprego. Para que fundamentalmente a recuperação não seja apenas do setor financeiro, no falso suposto que seria também da economia, mas que seja da sociedade como um todo, do capital e do trabalho. Aqui está o fulcro de toda a problemática: o investimento na produção. A sua impossibilidade (dada a exigência também neoliberal e aceita pela população de controle da inflação) do Estado Mínimo mostrou toda a sua dificuldade de propostas. Olhemos o Brasil de Lula. A reação do Governo foi exemplar diante da crise: desonerou os impostos para sustentar pelo consumo a demanda na economia, mantendo inclusive os empregos. Porém, a desoneração é uma política econômica defensiva, pois a verdadeira política seria o lançamento, com dinheiro público, inclusive através de impostos seletivos (outra medida condenada pelos liberais) sobre fortunas, sobre finanças, etc., com a finalidade de um programa público baseado num projeto nacional. Inúmeros setores estavam e estão precisando da intervenção estatal para reativar a economia (empresas e trabalhadores). Um projeto nacional pode ampliar os amparos, propondo desenvolvimentos amplos. Pode-se listar: a infra-estrutura urbana, a infra-estrutura energética, uma nova concepção de transportes no território nacional, um grande projeto de integração latino-americana, uma nova rede de serviços públicos eficientes (desde educação até proteção social). Ou seja, se não fosse um programa desse tipo poderia ser outro parecido. As Finanças, aqui e em toda parte, vêm impedindo, brincando de cabra-cega, por todos os meios – e o mais eficiente tem sido a ideologia – a transformação de um Estado político, cuja expressão social não seja metamorfoseada numa adesão pura e simples à política das Finanças.

O G-20 continua das finanças

1 – Olhe-se a comunicado do G-20. Como a crise estacionou, como alguns indicadores (muito poucos) dão alguns sinais de vida, os líderes se eriçaram em otimismo. Mesmo porque um dos lados da política é a ilusão, é a fantasia, é a esperança. Os governantes estão fazendo o seu trabalho e fazendo o melhor que podem. Porém, as propostas são sempre modestas, são sempre dourados sonhos. Por exemplo: há que tratar de cara e com força, da questão da elevação de capital na área financeira. Só que tratar de capital é tratar de aporte de capital. E com isso coloca-se em cheque a sua propriedade. Porque aí entra a questão da estatização, da nacionalização, da compra de bancos estratégicos por estrangeiros, etc.

2 – Há que mudar a governança corporativa. Até se falou nisso no G-20. Mas como se vai alterar a confronto entre os proprietários do capital e os dirigentes (esses que ganharam o recheio, quando botaram o bolo fora; esses que foram para casa com milhões de dólares no bolso e deixaram as corporações quebradas)? Essas mudanças, só poderiam alterar o sistema se rompessem com a forma financeirizada das corporações. Quanto às modificações do sistema financeiro, só se fala em medidas menores. Nada sobre unificação e controle das finanças, nacionais ou internacionais; nenhuma alusão ao controle social das instituições financeiras; nada sobre o crédito para os setores produtivos; nada sobre medidas técnicas de supervisão de alavancagens, de secutirização, das agências de ratings; nada sobre impostos sobre as instituições financeiras; etc. etc. Roosevelt falava em “Soft talk, big stick”. Agora é “soft talk, bull shit”. Ou seja, as finanças não querem mudanças. E estão conseguindo bloqueá-las, porque os governos que se reúnem são governos relativamente hegemonizados pelas referidas finanças.

3 – O G-20 fala contra o protecionismo. Só que o protecionismo, quem deve abdicar são os outros; nós, os Estados Unidos, somos os primeiros a tentar a proteção. Há declarações favoráveis aos estímulos fiscais, mas nos aportes financeiros do Estado, o principal vai para os Bancos, para o resto a ilusão dos cartões postais. Então, pode-se perguntar: quer-se recuperar a demanda com quê, com a preferência pela liquidez? Porque o setor privado não assume o investimento produtivo? Não foi outra a conclamação de Lula aos empresários, ao mostrar o elenco das respostas públicas das desonerações e do programa de Habitação Popular. Sabe o que fizeram os empresários? Os industriais reclamaram do custo Brasil (vamos botar mais ainda a crise no colo dos trabalhadores!) e os banqueiros souberam encontrar no silêncio a sua resposta preferida, quando se busca o seu apoio. (Não é o silêncio, ouro?). Por isso, quando se exalta o comércio internacional, quando os Estados Unidos pedem que os países superavitários gastem mais, fica cada vez mais evidente que o protecionismo é a mola, quem sabe suicida, do atual estágio do neoliberalismo na busca de sua salvação.

4 – Etc., etc., etc.

Onde olhar a melhora?

Pouco importa o que falamos. As sociedades constroem a sua saída. A mídia e o comunicado dos G-20 falam o que Shakespeare dizia muito bem: “Words, words, words”. A solução em economia e em política poderia ser uma mudança de letra, o d pelo k: “Works, works, works”. Se expressa deste modo o critério que vai nos permitir perceber quando a sociedade contemporânea estiver saindo desta Recessão/Depressão. Cape-se ou não o sistema financeiro, faça-o ou não funcional, somente a economia se recuperará como um todo quando dois aspectos inseridos no critério proposto forem atendidos: o investimento produtivo e o emprego. Até agora os primeiros tomaram um susto e levaram um tombo (menos na China) e o emprego sumiu das estatísticas e da realidade (inclusive na própria China). Concentra-se, nestas duas variáveis, o foco onde nós poderemos constatar se as pequenas melhoras que anunciam a retomada do consumo e da bolsa, do lucro dos bancos e das fusões corporativas, etc. são, de fato, efeitos de melhoras substanciais na organização econômica da sociedade. O ciclo só reabre a pendente positiva, a pendente ascensional, com o investimento produtivo e a queda acelerada do desemprego. Porque o resto não é silêncio, é bull shit de banqueiro. Ou como diz o samba de Elton Medeiros e Roque Ferreira: “a lama é lama e o ouro é o ouro”.

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