A proposta de reforma financeira de Obama "chocou" o mundo financeiro. O "inimaginável' aconteceu mais uma vez nessa crise: Obama propõe aprisionar e cantonar as instituições financeiras, amordaçando-as em regras rígidas.
Vamos a uma avaliação geral da situação antes de entrarmos nos detalhes da proposta. Tal qual eu e o Enéas vimos alertando desde o início desse processo ainda em 2007, dada a explosão em todos os pontos que articulavam o sistema e que ficou explícita em 2008, seria impossível mantê-lo intacto. A melhora de 2009 fortaleceu essa ilusão, mas essa foi uma recuperação exclusivamente contábil do balanço das empresas financeiras, a partir de uma transferência massiva de recursos do Estado para o setor. Ao contrário da saída de outras crises, a capacidade de soprar bolhas nos preços dos ativos (como vem ocorrendo nas bolsas de valores, nos "mercados emergentes" e nas commodities) não mais consegue dinamizar a economia como um todo. A hegemonia financeira não é mais funcional à acumulação do capital, ao contrário, é um entrave que exaure a capacidade do Estado de apoiar outras alternativas capazes de aglutinar um novo núcleo sistêmico expansivo. O centro do capitalismo mundial, os EUA, estão correndo sério risco de se arrastarem durante longos anos na digestão dessas perdas em uma economia estagnada à la Japão (isso apesar dos áulicos nos lembrarem todo o tempo das virtudes da flexibilidade e da capacidade adaptativa da economia norte-americana).
Os reflexos políticos da crise econômica provocada pela finança inevitavelmente se fariam sentir. Obama não conseguiu nem mesmo propor uma reforma financeira quando de sua posse e existem algumas hipóteses para esse fato. Ele teria acreditado na recuperação da finança e na eficácia permanente do estímulo fiscal e, portanto, teria sido persuadido pelo lobby financeiro a empurrar para o futuro alguma solução para a questão. Em outra possibilidade, Obama teria sido convencido que, dada a péssima situação do setor financeiro, qualquer regulação e restrição das atividades seria contraproducente (o timing seria inadequado). Uma outra, dentre tantas hipóteses a mais provável, dá conta de que a ação do lobby financeiro no Congresso teria impedido até mesmo a discussão de uma reforma. O certo é que alguns conselheiros de Obama (como Paul Volcker principalmente) e outros economistas ligados ao partido com influência na opinião pública (como Paul Krugman e Robert Reich, dentre outros) vem alertando para a imperiosidade de controlar o setor financeiro, embora em minoria numa administração cujos nomes proeminentes são Summers e Geithner.
Mas o tempo político se acelerou nesse início de 2010. A derrota dos Democratas em Massachussets, a péssima perspectiva do partido para as futuras eleições congressuais e a necessidade de ter algo a apresentar no discurso sobre o Estado da União na próxima semana empurraram Obama à ação nesse momento. A popularidade do Presidente está em queda e a bronca da opinião pública com a liberdade de ação do setor financeiro, em alta. Ao contrário do que parece quando se escuta a mídia triunfante, a economia norte-americana já apresenta sinais de que a estagnação está se transformando em nova desaceleração, como mostra o aumento no número de pedidos de seguro desemprego nas últimas semanas e o aumento no número de foreclosures combinado à queda na venda de imóveis novos.
E Obama passou da inação ao ataque com uma velocidade que surpreendeu o lobby financeiro. Sua proposta, espertamente cunhada "Volcker Rule" para se aproveitar do prestígio junto aos conservadores do ex-Presidente monetarista do FED Paul Volcker, é de compartimentar novamente a estrutura do sistema financeiro, proibindo a atuação de bancos comerciais em atividades próprias aos bancos de investimento. É um ataque direto à estrutura de bancos múltiplos que transformou as instituições em supermercados financeiros com uma infinidade de produtos. Os bancos não poderiam mais emprestar recursos aos fundos hedge e aos fundos de private equity, e, principalmente, não poderiam utilizar recursos próprios para a constituição de mesas de operação especulativas (atividades típicas de hedge funds, o chamado proprietary trading).
Estas atividades levam a vários conflitos de interesse, pois permitem a prática do front running (tomar a frente se engajando na compra de ações e títulos cujos preços sofrerão variação posterior por ordens de compra dos próprios clientes do banco) e outras operações de arbitragem possibilitadas pela interação entre os negócios com dinheiro próprio e os negócios com dinheiro dos clientes. A reforma de Obama levaria ao fim das atividades de divisões que operam como hedge funds dentro dos bancos e ao fim do uso de dinheiro de depósitos bancários (seguros pelo governo) em operações eminentemente especulativas. Obrigatoriamente, os bancos comerciais teriam de se desfazer de suas operações como bancos de investimento, levando a uma fissão das instituições e a uma redução do tamanho dos bancos (reduziindo o risco sistêmico ), bem como a um melhor controle e supervisão das atividades bancárias típicas. Uma limitação da alavancagem nas operações com divisas também está em estudo. Ou seja, trata-se de uma completa mudança na estrutura e na forma de atuação do sistema financeiro, separando atividades especulativas das atividades bancárias tradicionais.
A proposta, entretanto, é incompleta, ao não trazer regras para a operação com derivativos, nem para a difusão das chamadas inovações financeiras. Sabe-se, de outra parte, que essa reforma vem sendo estudada em nível da BIS e de outras instituições como algo geral e planetário, uma vez que sua implantação em um mercado nacional apenas deslocaria as operações geograficamente, sem alterar o risco por elas colocado.
As cartas agora estão na mesa e o Congresso norte-americano vai decidir a parada. Os lobbies vão lutar com todas as forças para ao menos amenizar as restrições à atuação do setor (ao que parece, a definição do que é proprietary trading é o ponto crucial para a efetividade da propsição e é aí que os lobbies vão atuar). Wall Street foi pega de surpresa e considera que "Obama declarou guerra ao setor financeiro". Obama afirmou que "se é luta que querem, eles terão e eu estou pronto para a luta". Imediatamente a mídia financeira passou a ridicularizar a proposta, dizendo-a 'inócua e populista" (essa expressão não podia faltar...). Caso a reforma passe nos termos propostos por Obama, o capítulo da desregulamentação financeira será página virada para os próximos anos. E, provavelmente, será um marco na desmontagem da hegemonia financeira. Mas a força política do setor financeiro é imensa e o resultado dessa luta é tão incerto quanto é importante para o futuro da economia mundial.
Em tempos de Fórum Social Mundial, Obama está a dizer que um outro mundo capitalista é urgente, possível e necessário. Não é o meu mundo, nem o nosso mundo dos sonhos, mas é o projeto norte-americano para a economia mundial que começa a ser reformulado, de dentro para fora. As instituições do neoliberalismo começam a ser definitivamente desmontadas, ao menos, essa é a tentativa de Obama. O que virá em seu lugar?
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