quinta-feira, janeiro 14, 2010

CRISE ECONÔMICA MUNDIAL
Coluna das quintas
14 de janeiro de 2010

ECONOMIA
BRASILEIRA:
NA VERTIGEM
DA EUFORIA

Por Enéas de Souza



Temos falado que o Brasil saiu, dentro das possibilidades, muito bem na crise. Agora se começa a pensar o que será o ano de 2010. E é preciso tentar entender este fenômeno, este corpo de economia brasileira na qual ela está se transformando. E se transformará. É preciso olhar como nos filmes de Philippe Grandrieux: ver o corpo, o seu ritmo, o peso dele, os seus ossos, a sua carne, o direito e o avesso das entranhas, etc. No caso específico de um crítico de conjuntura, dar uma olhada no esboço que trama como será este corpo da economia brasileira. E por quê? Porque já há gente que quer fazer da economia brasileira um espetáculo. Será o espetáculo de crescimento de que falava Lula? Antes de seguirmos adiante, pensemos um pouco nos nossos comportamentos de nação: de um lado, temos o “complexo de vira lata” de que nos falava Nelson Rodrigues, mas também aquela imagem megalô, “somos os campeões” do mundo, “Deus é brasileiro”. E vai ser difícil de nos demorarmos nesse olhar sobre o futuro (“Brasil, país do futuro”) porque 2010 vai ser o campo e o festival e o carnaval das ideologias. Trata-se, nem o mais desligado mauricinho desconhece, de um ano eleitoral, imensamente decisivo para a nossa história. Está em jogo o projeto Lula, mesmo que o antilulismo do PSDB queira evitar o tema.

Como se mexe a serpente

A economia é uma víbora que se mexe em busca de alimento, tem uma fome desgraçada. Quando está razoavelmente alimentada – aleluia! – viaja dando esperanças, fica quieta e deixa o mundo ter contentamentos e viver. Mas, quando entra em colapso, joga excremento em todo mundo, e põe uns contra outros, acusações e vociferações. Dito isso, como é que vamos entender as coisas agora? Os Estados Unidos sonharam a eternidade financeira e deram uma topada em ativos podres e se esborracharam no chão. Levaram consigo todas as economias do mundo, mas nem todos os países na globalização caíram do mesmo jeito. Mesmo porque as economias reagem diferente. A China, antes das outras, revirou-se, o Estado agiu e já está crescendo a mais de 9%. E, o Brasil? O Estado, limitado na sua força pelos anos neoliberais, desdobrou-se, renunciou impostos, definiu setores privilegiados e dinâmicos, escalonando uma série de isenções – desde automóveis até infra-estrutura, e segurou a queda da economia no abismo. Fez como Gary Grant quando reteve a queda de Eva Marie Saint nas cenas finais de “Intriga Internacional”, filme de Alfred Hitchcock. Neste movimento, o Brasil mostrou sua nova fase. A tradicional e falada pneumonia, que durante as crises anteriores se abatia sobre o Brasil, tornou-se, desta vez, fortes espirros de uma boa gripe. E não passou disso: uma boa gripe. E passageira. E, sobretudo, o setor mais pobre continuou atendido: bolsa família, aumento do salário mínimo, crédito consignado; incentivo para compra de produtos de eletrodomésticos, linha branca. Até a classe média baixa, média e alta trocaram de carro. De outro lado, para os de menor renda desenhou-se um programa especial: minha vida, minha casa. Portanto, o governo fica como passarinho imobilizado na frente da serpente.

Vamos dar um passo a mais na nossa análise. Sempre falamos que havia uma divisão, um corte profundo no Estado. Um setor desenvolvimentista, ligado num Estado intervencionista, e um setor que tenta forçar uma política de acumulação para as finanças, um Estado neoliberal, aberto – e bota braços abertos – para o capital internacional, para o setor financeiro. Bom, pois são estes caras que estão deslumbrados com o Brasil (também com a China, a Índia, etc.). E por quê? Ah, meus irmãos, o olho gordo das finanças. Ela está enxergando aqui no Brasil um espaço para a sua acumulação privada. Duvidam? Temos uma taxa de lucratividade altíssima, como nos afirma Delfim Netto (Carta Capital, desta semana), a valorização é de 7 a 8%, ao mês – e em dólar. Claro que ela vai vir, como já está vindo. Uma tempestade de investimentos internacionais em direção ao Brasil. Para que servem as taxas de juros zero ou quase zero nos países maduros? Temos aí a origem da alavancagem que propicia a emigração dos capitais para a terra de Macunaíma. E na revoada desses pássaros, apenas um partezinha pequena desce no ninho da produção. O grosso das tropas, a massa de insetos e de gafanhotos, vem não para o barco dos produtos, mas para a bacia financeira, para o mercado financeiro e para a Bolsa. E é ainda porque todo mundo está de férias que não estamos sentindo o ruído da manada. Mas já têm gente, alguns programas de televisão conhecidos, entrando na fase que Kindleberger chamaria de “euforia”. Ou, seja o Brasil já está entrando em campo para ser o campeão do mundo.

Quando a gangorra sobe...

Tudo está pronto para a festa. O Estado está com o comando da situação, mesmo dividido internamente. O lado desenvolvimentista conseguiu conclamar os empresários ao investimento, pelo PAC, pelas ações da Petrobrás, pelas isenções fiscais, pela ação do sistema de financiamento público (Banco do Brasil, Caixa, BNDES), pela força que tem dado ao mercado interno: salário mínimo, crédito, programa habitacional, isenções fiscais, etc. Os únicos pontos adversos são o câmbio (que facilitará as importações e dificultará as exportações) e a taxa de juros, como sempre alta para deter inflações, mas apetitosa para atrair capitais, etc. Além do mais estão disponíveis uma vasta e interessante gama de empresas que podem ser adquiridas e fusionadas no processo e no vendaval de capitais, que já está aportando e aportará por aqui. Ou seja, tudo promete um 2010 um ano de oba, oba, uma caravana jubilatória. Ainda mais que, sendo ano eleitoral, os gastos governamentais estarão em ação. E não adianta a oposição econômica e política, os liberais, a direita e o PSDB, pedir: contenção dos gastos correntes, aumento do superávit fiscal, controle da dívida pública, diminuição de impostos e o que mais que seja, que o clima será, se não houver uma queda brutal da economia americana ou internacional, de grandes resultados, de grandes saltos. O nosso Armínio Fraga, insuspeito economista, já disse que a economia brasileira vai crescer entre 4,5 e 5%. Mais do que a média dos oitos anos de FHC. E, se a previsão do governo de 5,8 for alcançada, ela baterá todo e qualquer recorde de crescimento das últimas décadas. O que estamos querendo dizer com tudo isso é que o samba das finanças, da produção e do governo pode dar um bom ano para o Brasil.

O problema é a falação que vem junto, sobretudo a falação dos liberais. Sim, mas tudo isso tem que ser considerado dentro do tumulto da eleição que está chegando. Como no Brasil, a eleição se mede pela economia e a economia se mede pela política, fica claro a quem ela beneficiará. Vai dar capital internacional, vai dar banco brasileiro em primeiro lugar, vai dar setor produtivo estatal e privado em segundo, e vai dar emprego e salário em terceiro. E isso vai assustar o Serra. Será? Será que ele vai arrepiar a corrida presidencial? Mas, seja que ganhe Dilma ou ganhe Serra, o que é certo é que a ideologia neoliberal vai tentar a sua fatia neste condomínio econômico. Mas se isto ocorrer na economia – atenção, estou dizendo: se isto ocorrer – a candidatura da Dilma dará um grande salto, pois colherá a festa das flores e dos cães, dos pássaros e dos rinocerontes. Seja por ser candidata do Lula, seja por ser candidata de uma nova aliança política finanças-setor popular, seja por que é vista e apresentada como a primeira ministra ou a gerente, conforme a visão, da profusão econômica que virá. Mas será que não terá contra-ataque?

Na festa, vai haver deslizamento econômico?

Quem olhar para as possíveis dinâmicas das combinações que serão possíveis com as forças econômicas se aprontando para se apropriar do Brasil, há algo que não é propriamente uma novidade. É preciso ver que toda forma econômica, qualquer que ela seja, já contém si os germes e os vírus de sua deterioração. Então, são esses pontos que o Estado tem que atentar, tem que cuidar, ao longo do tempo, para que não haja desfolhamento das matas. Existem vários problemas, dependendo dos desdobramentos, o que, no entanto, nos parece mais protuberante, se tudo correr bem, é algo que está na cara: o vulcão do saldo do balanço de transações correntes. Todos os economistas do NEPE, da Fundação de Economia de Estatística, têm a mesma opinião que eu. Este fotograma, nós já vimos. FHC II. Ou seja, a balança comercial dado a grande demanda de bens de capital, de matérias primas, peças, etc. e dado o escasso progresso do comércio internacional, vai produzir um resultado reverso. Mais importações do que exportações. Logo, vai dar negativo. E por outro lado, os serviços: lucros, juros, assistência técnica, etc. estarão como sempre dando números adversos. Ou seja, o balanço de transações correntes vai estourar, vai dar o seu salto no vazio. Claro, ao menos em 2010, se o quadro permanecer do jeito que está, vai entrar muito capital, o que dará para cobrir o balanço de pagamentos. Mas, a ferida de uma confusão no balanço de transações correntes nascerá no ano. Ora, isso vai pressionar 2011 de forma contundente. E estará armado o quadro para problemas no câmbio, problemas na dívida, problemas fiscais, problemas de empréstimos internacionais, etc. Isso não é uma fatalidade inexorável. Vai, então, haver muito que fazer e que controlar.

Tudo vai depender da economia política. As vigorosas lutas neste terreno desembocarão numa decisão de Estado, na figura de uma opção estratégica nacional. Definido o rumo, define-se, no correr do tempo, também uma pluralidade de decisões de política econômica. Esta trajetória passa por alianças e adversidades de classes, passa por manobras e apostas de poder, passa por uma forma de Estado e de governo, passa pelos conflitos de nações, etc. Há que atuar, evidentemente, com um grande jogo de cintura. Jogar cima da lâmina, no círculo das múltiplas contradições. É deste jogo de facas no escuro que vai se perceber se o Brasil conseguirá aproveitar as oportunidades que estão vivas. E evitar, ou contornar, ou afrontar, as ameaças com um projeto bem administrado macroeconomicamente. Batalhas perdidas terão que ser mínimas; senão vai tudo explodir no colo da Dilma ou no colo do Serra (se estes forem os candidatos) E se tudo explodir, será uma repetição, sob forma de farsa (?), de FHC II, se é que este já não foi a farsa de FHC I. A economia é antecipadamente imprevisível; se fosse previsível não teria necessariamente solução; e se tivesse solução não seria definitiva. A economia é, como diria Rimbaud, uma estadia no inferno, um barco bêbado. Ela é indomável, porque o capital é cíclico e o ciclo tem um cão embutido que ladra e que se chama crise. Ou seja, o nosso próximo destino se jogará entre 2010 e alguma data, entre a euforia e o colapso. A viagem está claramente começando.

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