quinta-feira, novembro 26, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
26 de novembro de 2009

O PODER DAS PERGUNTAS
Por Enéas de Souza

Parto para as férias, mas deixo perguntas. Perguntas que nos permitem compreender a evolução dos acontecimentos do que se chamou de crise financeira mundial. Mas, como temos defendido neste pedaço da internet, esta crise é uma crise estrutural. Logo, com estas perguntas, com algumas delas ao menos, teremos um certo norte para avaliar as idéias das soluções micro e macro, sejam econômicas, sejam políticas, que estão sendo propostas por toda parte. Estas perguntas servem de guia para detectar possíveis soluções e prováveis impasses dos conflitos entre as forças sociais que atravessam as conjunturas da sociedade contemporânea. Por outro lado, estas questões, que são inúmeras, podem chamar inúmeras outras. O mundo está em subterrânea transformação. Numa época onde as soluções da crise ainda estão em gestação, em contendas, ou mesmo que ainda estão ocultas para as diversas frações em conflitos, perguntar tem a saúde de encarar os redemoinhos de frente. E é por isso que todos devem exercitar, de coração e prontos para o combate, o formidável móvel do questionar e da indagação. Eis a minha contribuição, leitor infatigável; você pode ampliar, de acordo com o seu espírito crítica e sua posição política. Perguntar é uma forma de ser como D. Quixote, sair pelos horizontes do atual capitalismo e detonar a ideologia de que tudo está bem e que tudo será resolvido pelo crescimento e pela restauração do capital financeiro. E, ao mesmo tempo, saber que as perguntas não são privilégios, nem tem o poder pela sua simples existência de causar a metamorfose do mundo, as palavras podem permitir de nos darmos conta da diversidade e da amplitude dos problemas. E, claro, perceber que há uma vasta manobra de enrolação que estamos sofrendo por parte dos donos do poder. Por isso, a palavra é frágil e as perguntas são, quando muito, o gesto de despir o rei. O capitalismo financeiro está nu. Mas, o que podem tecer as perguntas? Qual o seu poder? Descartes dizia que a gente deve duvidar pelo menos uma vez na vida. E diante deste fracasso do neoliberalismo de guerra, as perguntas poderão ser um corte na continuidade absurda da aceitação deste mundo que acabou. O mundo que virá pode até ser pior, mas não por causa das perguntas. Elas darão um tempero ao grande combate das forças sociais, porque é aí que as coisas vão se definir. Perguntar é também uma forma de proteção. As palavras têm o poder de impedir que o silêncio possa ser usado contra cada um que gostaria de perguntar e não pergunta. O silêncio é ouro individualmente, mas socialmente é o princípio da concessão de coisas que não devem ser concedidas. Perguntar é o começo da resistência. O que não quer dizer que tudo esteja resolvido. Pelo contrário, o triunfo do banal, da insustentável leveza do capital financeiro, da ideologia dos vencedores, reagirá com novas idéias e novas e novas robustas ilusões. Temos que saber, como dizia Custódio Mesquita no seu samba famoso, que o capitalismo financeiro é “nada além de uma ilusão”. E assim, perguntar é uma forma de desvendar o véu e a neblina daqueles que se querem vencedores sem ceder nada. E tentar, com uma visão mais clara, construir um novo acordo político mais favorável a todos.

Pelas finanças, as economias também morrem?

1
– A reforma financeira está sendo discutida no Congresso Americano. O Governo mandou uma Financial Regulatory Reform. Três são as correntes que atravessam a vida dos parlamentares, seja sob a forma de lobbies, de pressões grupais, de e-mails, de artigos na mídia, etc. Os bancos não desejam mudar nada. O governo quer alguma regulação centrada num conselho de reguladores, num Fed capaz de intervir em toda empresa que possa apresentar nas suas operações risco sistêmico e deseja aumento de capital para diminuir o risco dos grandes bancos, os “too big do fail”. E finalmente, existe um terceiro grupo que quer uma regulação muito forte, com muitas propostas tendo muitas nuances. Não importa. A primeira pergunta é a seguinte: qual é a linha que vai marcar a diferença e pela qual se pode ver se os bancos continuarão mandando sem nenhuma ou com poucas concessões; ou se eles, os bancos, vão passar a funcionar para a sociedade, “serve to the public” como disse estes dias Paul Volker, ex-presidente do Banco Central Americano? A importância desta pergunta é evidente, porque a sua resposta vai nos permitir ter certeza que as estruturas vão mudar.

2 – Uma segunda pergunta de interesse nesta área: Se tudo ficar como estava, a economia americana pode se recuperar? Ou dito de outra maneira: a destruição já alcançada em entidades financeiras e de certas operações financeiras em larga escala não afetará decisivamente a estrutura da dinâmica do setor, sua arquitetura, suas funções, etc.? Ou ainda: quando as estruturas econômicas e políticas exigem transformações no capitalismo, um setor da sociedade (no caso, as finanças) pode bloquear estas exigências de mudanças? Se afirmativa a resposta: e por quanto tempo?

3 – As estruturas contábeis do Banco Central, apoiadas pelo Tesouro, estão trazendo os ativos podres para dentro do Estado, de tal modo que o seu poder fiscal, já em deterioração, será profundamente afetado. As perguntas imperiosas: o desdobramento disso será a progressiva queda do dólar? Há possibilidades de que o dólar se desvalorize totalmente? E será como antigamente quando acontecia com o nosso velho cruzeiro: haverá um dólar novo? Em que ocasião? E em que bases?

Quem quer um Estado diferente?

1 – Dificilmente o Estado que se desenvolveu no período neoliberal continuará a funcionar sem alterações. Como, então, poderemos perceber que estão ocorrendo ou vão ocorrer modificações na estrutura do Estado? Em que direções irão estas modificações? Teremos um Estado mais financista? Um Estado mais produtivista? Qual a articulação que existirá entre o Estado e o setor privado? O Estado e os assalariados? O Estado e os desempregados? O Estado continuará a fazer o jogo dos ricos, permitindo que aumente explosivamente a distribuição de renda? Os impostos aumentarão? As ajudas ao setor financeiro continuarão escandalosamente? Quais os setores produtivos que serão apoiados? E os assalariados recuperarão os seus direitos sociais, sobretudo aqueles altamente capitalizados pelo setor financeiro? O Estado voltará a liderar e fará dispêndios em termos de investimento, apoiando o setor produtivo e incentivando a retomada do emprego? O Estado transformará as suas estruturas internas, diminuindo os poderes das finanças sobre órgãos como o Banco Central, como o Tesouro? Que nova ideologia vai apoiar a construção de um novo Estado? O Estado transformará as suas estruturas internas, diminuindo os poderes das finanças sobre órgãos como o Banco Central, como o Tesouro? Que nova ideologia vai apoiar a construção de um o novo Estado?

2 – Estas perguntas retornam à questão básica da secção anterior: o dólar será banido da posição de moeda mundial? Pergunta que leva o seguinte acréscimo: serão capazes os Estados de sustentarem as suas moedas?


A produção deixará de ser financeirizada?

1 - Um dos aspectos fundamentais da economia é que o capital tem duas órbitas, a financeira e a produtiva, com uma hegemonia fundamental da órbita financeira. Bem, as questões que aparecem são as seguintes: o capital passará por uma nova fase? Como será a relação entre as órbitas? Qual será a hegemônica? Haverá harmonia entre elas? Qual será o Estado? Haverá opção pelo Investimento? Que mudanças existirão na própria estrutura do Estado? (Como se vê as questões, partindo de pontos diferentes, acabam, em determinados momentos, umas se enroscando nas outras.)

2-Quaisquer que sejam as respostas, teremos que descobrir se esta produção será financeirizada ou não. E emerge como uma bomba terrorista a pergunta chave: o que será feito com a governança corporativa? Vai ser alterada? Vai ser suprimida? É possível mudar a estrutura financeirada das corporações produtivas? Se não mudar, a economia capitalista pode deslanchar para um novo período de crescimento e, sobretudo, para uma nova estrutura do sistema?

A classe operária e os assalariados foram para o Inferno?

1 – O que estamos vendo é uma massa crescente de desempregados, que se expandiram desesperadamente como formigas soltas depois que um formigueiro foi destruído. Todos os trabalhadores estão marcados por um forte impacto, maiores para uns, menores para outros. Alguns perderam emprego, o que é um drama; outros perderam casas, carros, empregos e embanaram as contas de seus cartões de crédito, o que é uma ópera próxima da tragédia. Isso tudo significa que a classe operária e os assalariados enfrentam uma muralha. A derrota do capital implicou também na sua derrota econômica. Poderão sair vitoriosos pelo lado político? Como?

2 – Olhando o panorama geral observa-se que, de um lado, os operários enfrentam a tecnologia que os domina e trava as necessidades de aumento de emprego; de outro, as finanças criaram novas barreiras para requerimento de trabalho sob diversas formas: exigência de alto rendimento de ações das empresas, eliminação de empregos em centros de custos elevados, liquidação da variação de produtos lucrativos cujos resultados não levam a expressivas valorizações das ações, etc. E, ainda por cima, os trabalhadores estão com dificuldades de sindicalização e da amplitude de participação dos seus sindicatos. E, no tocante, às suas poupanças nos fundos de pensões privados, olha só o que acontece em muitos destes fundos: eles são administrados por uma direção que se autonomiza dos contribuintes e, que em muitos casos, por má gerência financeira, são submetidos a fracassos na evolução dos rendimentos destas entidades previdenciárias. E, não param aí os problemas dos assalariados. Há, naturalmente, um mal estar em termos de direitos sociais, porque desde a educação até a segurança são todos manobrados pela capitalização imperiosa do neoliberalismo. Portanto, tornaram-se produtos e serviços que estão sob a égide da valorização do capital. E pior, conforme os conflitos dos capitais essas mercadorias se tornam direitos instáveis quando o mercado se mostra adverso. E como o ápice do ápice, os trabalhadores, como fração dominada da sociedade, sofrem a ideologia da mídia financeirizada sob todas as suas formas: publicitária, jornalística, radialista, televisiva, cinematográfica, que passam a gerir e povoar o imaginário e a ambição de sucesso das classes ditas inferiores.

3 – Então, diante deste quadro, as perguntas eclodem: os assalariados, que até agora foram os que mais sofreram com a crise, têm capacidade de reformular este panorama de desvantagens quase interminável? Quais os caminhos que podem permitir um reforço à luta, à mudança destas condições para os trabalhadores? A democracia liberal, que faz com que as eleições sejam definidas pelas classes populares, mas que são apropriadas pelas classes dominantes, por diversas formas, poderá dar lugar a uma democracia mais favorável à pressão dos assalariados? Com que instrumentos? No processo global da sociedade, porque os trabalhadores não têm projeto de modificações de suas condições políticas? O socialismo ficou definitivamente superado pelo capitalismo financeiro? A financeirização da remuneração dos trabalhos (poupança, aplicações financeiras, direitos sociais, etc.) poderá ser alterada?

4 – Mesmo com perdas no domínio político e econômico, o setor financeiro continuará impor aos assalariados, as mesmas regras de flexibilização e precarização do trabalho até o colapso da antiga arquitetura financeira? Quais são as possibilidades de mudança da posição dos assalariados? Que pactos podem fazer os trabalhadores? A expansão do domínio do setor de novas tecnologias de informação e de comunicação, se ocorrer, mudará significativamente o comportamento dos salários, os termos do processo de trabalho, a questão dos direitos sociais, etc.?

Que idéias, valores e imagens dominarão a nova sociedade?

A pergunta já vem sendo escandida de longe: que novas ideologias serão introduzidas nas lutas políticas, econômicas e sociais de uma nova época, de uma nova estrutura do capitalismo? A indústria ideológica (publicidade, cinema, rádio, TV, imprensa, lazer, etc.) funcionará de que maneira e com que modificações na condução e na construção de um novo caminho para a sociedade? Neste setor, o capital continuará imbatível ou surgirão novas formas de oposição e democratização? Os trabalhadores encontrarão saídas para usar as formas das novas tecnologias de comunicação e informação a seu favor?

O que vai soldar a economia internacional?

Se a política der curso pacificamente e a economia deslanchar, estamos às vésperas de uma nova realidade internacional, onde o sistema mundial da concorrência entre as potências vai se modificar com uma menor capacidade hegemônica dos Estados Unidos e com uma presença mais encorpada e de mais longo prazo da China. Ao mesmo tempo, prevê-se o aparecimento de outros emergentes como a Índia, o Brasil, etc. A pergunta é: que economia, que política, que idéias vão permitir o elo internacional e o progresso deste sistema mundial? Qual a ideologia que vai soldar os resultados dos combates entre pos países? O mundo caminha para um estado belicoso severo ou teremos um tempo para o rearranjo do sistema? Qual a temporalidade desta re-acomodação?

(Use o poder das perguntas para entender o que está acontecendo. Você verá que as coisas podem até estar mais complicadas do que estamos pensando. Mas, em todo caso, os problemas e os temas ficarão mais claros. Como pensam os lúcidos, o importante é fazer as perguntas. E fazê-las bem. E, se possível, perguntá-las dos mais diversos pontos de vista. As perguntas são como uma cidade iluminada, elas desenham lugares e esclarecimentos.)

(Até daqui um mês)

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