quinta-feira, julho 28, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
28 de julho de 2011
Coluna das quintas

NEM EUROPÉIA,
NEM AMERICANA:
A CRISE É MUNDIAL
Por Enéas de Souza

1) André Scherer escreveu um belo artigo em http://econobrasil.tumblr.com/ sobre a crise européia. E como num jazz, ele tocou uma guitarra, agora, estimulado pelo som, pela música, toco o meu sax tenor. Estamos numa plena “jam session” ou num sarau sobre a crise financeira internacional. O que poderia dizer em paralelo? A minha primeira frase musical vai para a velha tese, que André também concorda: a questão é o domínio econômico e político das finanças. E, em minha opinião, é preciso retomar a autonomia do político em relação à economia; isso porque, certamente, a política está dominada, subordinada, funciona como serva das finanças. Claro, a Alemanha observa o lado geopolítico. E pode-se ver que toda a sua manobra, desde muito tempo, era compor uma parceria crítica com a Rússia e enrolar a França deste gênio Sarkozy para fazer da Europa, uma Europa dos capitais. E, nesse movimento, tomar uma posição mais consolidada em face dos Estados Unidos e da China. A Comunidade Européia sempre foi um sonho da Alemanha... para a Alemanha.

2) Cabe falar um pouco da Europa dos capitais. Pois, a idéia alemã era exatamente isso: avançar num espaço sem controle, o espaço europeu, sem nenhuma força política, salvo os Estados e as representações limitadas dos Estados, para ter um espaço de domínio da valorização dos capitais europeus. Um além Estado nacional onde o capital pudesse se valorizar sem freios. Ou melhor, com algum controle, só que a seu serviço, em seu benefício. Por isso, para arbitrar as desavenças entre as instituições financeiras, foi criado o Banco Central Europeu. E, inclusive, para definir coisas singelas para os capitais, como a taxa de juros básica do sistema.

3) Parecia essa idéia uma aleluia. O sistema inventa e os homens – no caso, os financistas – ficam à margem como pescadores na borda do rio das finanças. Mas o que importa de um modo geral aos homens de negócios são os cálculos da economia sem ver que essa só se mantém se existe uma dinâmica que passa pela ordem política. Então, Volker, o presidente do FED, inventou, sem saber, o dólar como moeda financeira, depois de 1979, que inclui duas coisas, duas realidades: a taxa de juros que assegura ao dinheiro a valorização temporal mínima desse capital, mas que se materializa nos títulos do Tesouro, no primeiro caso, nos títulos do Tesouro Americano. Esses dois elementos garantem a moeda com a sua função principal de reserva de valor, num mundo pós-Bretton Woods, num mundo sem o dólar ouro, com o dólar financeiro.

4) Falei duas condições: o Banco Central com sua taxa básica e o Tesouro, com o termo que garante a valorização do dinheiro. Pois vejam a falseta européia. Criaram o Banco Central, mas não criaram o Tesouro – deixando a cargo dos países componentes da Comunidade a garantia da moeda, ou seja, cada país sustentava o Euro com o seu Tesouro. Olha só o lado manco que a Europa armou: um banco central geral, mas vários Tesouros, alguns Tesourinhos, para sustentar o Euro. Olhe e pense o leitor: o Tesouro irlandês, o Tesouro português, o Tesouro grego estão à altura do Tesouro Francês e, suprema comparação, do Tesouro Alemão? O Euro criou o múltiplo e capenga Tesouro esfacelado da Europa. É essa multidão de pedaços que os políticos europeus estão tentando costurar.

5) Dirá o leitor controverso: mas, alto lá! Como é que a moeda européia continua geralmente valorizada no mesmo nível por relação ao dólar (1,40)? Ambrose Evans-Pritchard matou a questão. O euro está caindo em relação a várias moedas, inclusive o “Brazilian Real”. Ou seja, o dólar e o euro são duas moedas bêbadas. Claro, tem um lado que a desvalorização tenta servir ao comércio externo dos países da Europa e dos Estados Unidos, tentando favorecer suas exportações. Mas o fato é que o eixo inflamado USA-Inglaterra-Comunidade Européia está em queda na sua sustentação econômica, caracterizada pela derrapagem de suas moedas. E essa derrapagem está expressando a queda desse eixo em relação à China. E o problema é grave, porque o yuan não é moeda de mercado, não tem capacidade para ser moeda mundial, o que significa que nosso Mantega tem razão: estamos numa guerra cambial. E, sobretudo, o sistema monetário internacional não tem uma moeda forte para conduzir o processo das trocas.

6) A Europa está complicada porque o jogo está sendo feito em cima não de uma Europa política, mas sim de uma Europa dos capitais, que, para se proteger, avança mais um pouco o lado político. É isso; mais um pouco. Vejam: o Fundo de Estabilidade Europeu tem mais possibilidades de ser uma Agência Européia de Resgate de Dívidas do que um Tesouro. A turma segue com cuidados, mesmo agora, quando Trichet, o presidente do BCE, já está convencido que é preciso um Tesouro europeu. Não adianta, a turma vai num passo cauteloso por causa da necessidade do capital não querer controles sobre si e desejar manter um poder forte, intenso, de pressão, sobre o(s) Estado(s).

7) O projeto das Finanças européias não é incrementar a formação do Estado europeu, salvo se ele for absolutamente necessário. Por quê? Por causa da liberdade de ação. A tal autorregulamentação dos capitais. Eles tiveram um susto com a Grécia, Portugal e Irlanda. Mas acreditam que driblaram a crise. E vejam só como pensa uma cabeça de banqueiro: vamos ajudar os gregos, os irlandeses, os portugueses. A taxa de juros é, digamos, 5%, agora estão baixando para 3, 5%. Pois bem, ajuda? Vejam a Alemanha paga 3%. Pois mesmo nesta ajuda existe um premio de risco de 0,5%. que os capitais vão faturar. É obvio que para os países em crise é um grande negócio, pois a Grécia chegou a pagar 17% de premio. Mas ajuda? Ajuda, sim, só que os caras ganham ainda um naco. Ou seja, ajudam, contudo continuam, para não perder o costume, batendo o bolso dos contribuintes gregos. Na verdade, a pergunta decisiva é: a quem eles estão ajudando?

8) Quem ganha? Em primeiro lugar, as finanças que não quebram, e, em segundo, os Estados dos bancos emprestadores. Porque se quebrarem os bancos, quebram os Estados também. O pacote é sensacional porque é um pacote financeiro que tenta salvar todo mundo: Estados devedores, bancos dos Estados devedores; bancos emprestadores e Estado dos bancos emprestadores. E nesse lance, há algo que é preciso enxergar: a Alemanha forçou todo o tempo a entrada, na “ajuda”, dos capitais privados. À primeira vista é interessante, porque os bancos são “voluntariamente” convidados a comparecer, modificando juros para baixo e prazos por mais tempo para cima. Certo? Certo! Só que há um pequeno detalhe: Ângela Merkel concitou os banqueiros a entrarem nas negociações, o que é um escândalo, porque aprofunda a combinação Estado-bancos. E consequência tem sabor especial: os bancos propõem uma atitude particular numa negociação de Estado e o Estado se privatiza mais ainda, com as finanças aumentando o seu domínio público. Maravilha!

9) E, pelo apresentado acima, se pode ver que as finanças, com cumplicidade dos chefes de Estado dos países, não só resistem à formação dos Estados Unidos da Europa, como os avanços eventuais que se façam, serão desviados, em cima do lance, em proveito delas. Ou seja, Estado nunca! A não ser que sejamos os donos dele. Por isso, não acredito que a Europa se faça Europa sem que haja uma hecatombe. E o passo feito agora é apenas para construir um arremedo de Tesouro, uma Agência de Resgate de Dívidas. E se conecta nesse link uma integração dos banqueiros na reestruturação da dívida, compondo com o grupo de dirigentes do Estado um acréscimo da privatização das decisões estatais.



10) Uma coisa importante que André e eu concordamos: não há crise grega, ou crise irlandesa, ou crise portuguesa. O que há é uma crise européia. E para dizer a verdade: a crise não é européia. Nem européia, nem americana, a crise é da economia mundial. E ela vem avançando a partir de um eixo que está desabando, fenômeno de geologia econômica, capaz de trazer para o primeiro plano uma profunda crise financeira que culmina numa crise monetária. E, no caso, uma dupla crise monetária: o dólar pelo lado americano e o euro pelo lado europeu. Então, como afirmamos acima, a crise da moeda tem origem numa crise do Estado. Efetivamente, o resultado vem a galope, estamos diante de uma imperiosidade de grande envergadura: a mudança da configuração atual do Estado. E aparece a fatal pergunta: mudará?

11) O que é que deve mudar nesses Estados? Primeiro, o retorno da soberania, do poder e da autonomia do Estado em relação às forças econômicas. É a política que deve assumir o comando do processo social, em função dos interesses do Estado e da sociedade. O poder que institui é o povo, a população, a multidão, a sociedade, em nome do qual se governa. A pergunta do momento: não foi exatamente a idéia de Bem Comum que as finanças esqueceram?



12) Pode-se ver a realidade do poder social através da posição que o Banco Central ocupa no conjunto das instituições. E daí vem a pergunta subseqüente: como é que existe um órgão encastelado no Estado, com o poder coercitivo do Estado, que não se submete ao poder executivo, quando toma medidas executivas? Ora, não pode o Banco Central ser autônomo e nem, muito menos, independente do governo. Ele tem que estar integrado na política econômica do Estado, numa política econômica global, que atue sobre as políticas monetária, cambial, fiscal, financeira, mas também sobre as políticas industrial, tecnológica, de rendas, agrícola, agrária e sociais, mesmo num quadro de acumulação de capital multinacionalizado. Por isso se percebe a mágica das finanças. Sob a alegação de que não deve haver influência política nas decisões financeiras do Banco Central faz-se uma agência que decide “tecnicamente” sobre as variáveis que influenciam o mercado. “Tecnicamente”, é claro, quer dizer que as melhores decisões são aquelas que encontram as soluções mais benéficas para a concorrência dos capitais na esfera financeira. Mas, atenção, se conseguiu algo melhor ainda – e essa foi a solução dos últimos tempos - as finanças passaram a deter a sua própria regulamentação. E o que sobrou para o Banco Central? Definir a taxa juros básica do mercado e coordenar, nas crises, soluções para as falências ou pacotes de salvação para as instituições financeiras.

13) A segunda mudança fundamental do Estado é a posição que o Tesouro assume na sua estrutura. Ele não pode ser instrumento de uma política financeira das finanças, tem que ser um dos pilares da política e da estratégia de um Estado. Logo, o que importa na dinâmica da política contemporânea é a mudança das relações políticas, de uma sociedade que impeça o assalto do Estado que as finanças fizeram e fazem nos dias que se aceleram. É óbvio que essa mudança só se processa no tempo, depois de muito combate e muita luta, na continuidade dos fracassos sociais rotundos das políticas geradas pelo atual setor hegemônico. No entanto, ela já está a caminho. Só que sua concretização depende do persistente trabalho da política e da sociedade.

14) Podemos dizer que, na dimensão histórica da vida presente, essa metamorfose se fará no bojo de uma dupla passagem. A passagem geopolítica da unipolaridade americana para a bipolaridade USA-China, e a passagem de um modelo de acumulação de capital centrada na produção de petróleo e automóveis e produção em massa para um modelo baseado nas novas tecnologias de comunicação e informação (revolução da informação, “cheap microeletronics”, computadores, softwares, telecomunicações, biotecnologia, novos materiais). É nas lutas para essa dupla passagem que poderemos buscar à seguinte realidade, o seguinte e óbvio objetivo: não são os povos que devem servir as finanças, mas as finanças que devem servir aos povos. Por que uma realidade tão clara foi obscurecida por tanto tempo pela filosofia e prática do neoliberalismo?

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