quinta-feira, julho 07, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
07 de julho de 2011
Coluna das quintas


A METAMORFOSE
NECESSÁRIA DO ESTADO
Por Enéas de Souza




Vamos trabalhar hoje um pouco sobre as dimensões desta crise atual, que não é uma crise do capitalismo, mas é uma crise de uma fase do capitalismo. Se poderia dizer que é uma crise da liderança das finanças, uma crise de um padrão de produção e uma crise da estrutura do Estado. Existem alguns aspectos desse colapso que seriam importantes destacar.

1) Esta crise acusa a interrupção de uma dinâmica econômica comandada pelas finanças. E está expressa na brutal crise americana, com desdobramentos na Inglaterra e no continente europeu. Vem, por sua vez, caracterizada pela crise dos derivativos financeiros cuja origem estava nos títulos montados em cima de hipotecas do setor imobiliário, que desabaram em 2007/8 tendo seu grande momento na quebra do Lehman Brothers e de outras instituições. O que se interrompeu nesse instante foi o prosseguimento intensivo da lógica financeira da especulação. Pois todo o crédito dado pelas finanças se dirigia preferencialmente para o mercado de títulos privados ou públicos. Ora, ao criar problemas de liquidez e de insolvência nas suas instituições, as finanças provocaram a transferência da dívida privada para os Estados, o que acabou causando também uma situação de insolvência em alguns países, pois a dívida pública explodiu fortemente. Caso da Grécia, de Portugal, da Irlanda e da Islândia. Foi nesse processo que entrou em cheque a liderança do setor financeiro.

2) Na débâcle americana houve também uma crise na esfera produtiva. Pois a derrubada do setor imobiliário criou e arrastou consigo toda uma cadeia de indústrias na estrutura da produção. O que se evidenciou foi que o padrão centrado no longo prazo em petróleo e automóvel, embora permitisse o desenvolvimento significativo de indústrias como a bélica, a midiática, a da informática, a eletrônica, a da construção civil, esse padrão resvalou para um esgotamento lucrativo evidente. Isto quer dizer que o bloco petróleo/automóvel chegou a um certo limite, sem permitir, no entanto, que novas combinações levassem à transformação do padrão de longo prazo. Não quer dizer que novas indústrias não estivessem atuando para modificar o que estava instalado como principal. Nesse sentido, as indústrias de telecomunicações e de informações, futuro centro da nova ordenação produtiva, estavam presentes. Porém, as condições institucionais de operação das finanças para o fornecimento de crédito às mudanças profundas da produção (e mesmo distintas estruturas institucionais estatais) não estavam dadas. Pelo contrário, estavam condicionadas ao padrão baseado nos automóveis e no petróleo e na produção de massa.

3) A terceira dimensão da crise é a crise do Estado. E o que se pôde perceber é que o Estado teve uma função predominante de apoio às finanças sob uma forma curiosa, a de retirar-se da Economia. Com esse gesto, permitiu que o setor financeiro se autorregulamentasse e criasse condições para uma expansão temerária e extremamente perigosa dos seus ativos. No momento da crise, os Estados, a começar pelo Estado americano, foram assustadoramente benevolentes com esse setor, fornecendo recursos financeiros e proteção, tanto através dos seus Bancos Centrais como dos seus Tesouros. Mas não deram a mesma atenção às estruturas produtivas e muito menos aos assalariados. Para esses, não buscaram nem o alívio das dívidas das famílias, nem trabalharam para a recuperação do emprego. O Estado que, durante todo o tempo de sucesso das finanças, elaborou uma política econômica restrita à política monetária, à política financeira e fiscal, jamais usou o peso de sua organização e de sua burocracia para efetuar uma política econômica global, incluindo política industrial, política de emprego, política de rendas, política tecnológica, etc. O Estado, por essas razões, tornou-se um admirável e fúnebre prisioneiro das finanças.

4) Portanto, a questão da economia está hoje nesse ponto: a) houve uma perda de dinamismo das finanças na invenção e venda de produtos financeiros, acarretando uma estagnação da sua liderança na área econômica; b) aconteceu um emperramento do setor produtivo, que não teve condições de efetuar as transformações estruturais para a passagem de um padrão de longo prazo para outro; c) emergiu um aprisionamento do Estado pelo capital aplicado nas finanças, ficando, por consequência, sem condições para a reformulação de suas estruturas burocráticas e acabando por endividar-se de uma forma tenebrosa. Na realidade, muitas nações chegaram à beira da insolvência.

5) Então, o leitor veja o encadeamento do esquema da crise: crise das finanças – crise da produção – crise do Estado. E esse último elo ameaça tomar um rumo que pode ter um efeito de dinamite, enlaçando e recaindo novamente sobre as finanças. É o caso da Grécia e de Portugal que podem afetar os bancos franceses, alemães, espanhóis, ingleses. E aí fertilizar uma espiral envolvendo nova crise financeira, nova crise produtiva, nova crise do Estado. A espiral tomaria vulto e corpo e poderia terminar num círculo progressivamente vicioso. E isto não parece estar muito longe, está quem sabe ali, logo na curva da estrada porque as tentativas de solução do capital recaem sempre sobre uma política econômica comprometida com as finanças. Ou seja, o objetivo não é recuperar o país, promover uma política de retorno das atividades produtivas e ter um programa de desenvolvimento com investimento e com avanço do emprego. Não, o objetivo é fazer operações financeiras para que os Estados, ao diminuírem gastos, eliminando salários, destruindo aposentadorias, etc., consigam resultados de caixa capaz de pagar as suas dívidas com as instituições bancárias. E claro, já se sabe, que as políticas de contração vão afetar a demanda, seja de investimento, seja de consumo. E como nos países da Europa, o câmbio não será desvalorizado, o comércio externo vai igualmente desabar.

6) A questão principal desta crise é, sem dúvida, o aprisionamento do Estado pelas finanças. Num país como os Estados Unidos, a maior potência da economia mundial, a temática nos mostra que a paralisia do Estado, seja pelo endividamento, seja por leis do Congresso, é agressivamente contra a metamorfose indispensável da sociedade. E sem o seu dinamismo não se alcança a transição entre o atual padrão de desenvolvimento e um outro futuro. O caso é que o Legislativo impedindo uma mudança profunda na regulamentação dos bancos e impondo ao endividamento público americano um teto – negociação que está se efetuando entre o Governo e os partidos políticos, sobretudo o Republicano – amarra a capacidade do Estado de reformular sua ação. Com essa paralisia, ocorre o impedimento da entidade estatal modificar suas estruturas e preparar seus recursos e sua capacidade universal de coordenação no rumo de um novo Estado e de uma nova trajetória de acumulação, cuja prioridade seja o setor produtivo.

7) Que Estado seria necessário construir? Em primeiro lugar, é preciso compreender que um Estado só se transforma por meio de forças políticas, que na luta social, assumam o poder e tenham uma estratégia e um projeto de transformação. Em segundo lugar, cabe perceber que o Estado terá uma etapa obrigatória no seu projeto: a reformatação do sistema financeiro. Com um toque de bom senso, seria pôr as finanças a serviço da sociedade. E em terceiro lugar, está nas contas desse processo a prática do Estado organizar suas instituições em função do novo padrão de acumulação de capital, o que implica a determinação de novas relações entre as finanças, a produção, o trabalho e o próprio Estado.

8) A tarefa, na verdade, de reconstrução do Estado culmina pela subordinação das finanças à prévia estratégia desse, ao mesmo tempo que inclui um projeto de sinergia das forças econômicas para o desenvolvimento de um novo padrão de acumulação de capital. A reorganização do sistema financeiro não se faria sem complicações, pois exige definições na estrutura de capital das empresas bancárias, na ênfase do financiamento da produção por relação à especulação e na concepção de medidas de controle, fiscalização e orientação do sistema financeiro.

9) Por essa razão, fica mais que demonstrada a necessidade fundamental de reorganizar toda a dimensão da sociedade na vertente que começa pelos Estados Unidos e chega até a Europa. Pois o mundo está precisando que esse lado do planeta se reformule, uma vez que uma outra parte já está se organizando, a começar pela China, Índia, Brasil, Rússia. Mas talvez seja a China que esteja mais avançada na transformação do Estado. De qualquer modo, não se pode chegar a um novo mundo com o atual Estado que tem o Ocidente, fundamentalmente dominado pelas finanças. O mundo começará a mudar se elas se colocarem ou forem colocadas numa nova posição dentro da sociedade. E elas só mudarão se houver um novo Estado com um novo conjunto de forças, armado de uma estratégia e de um novo projeto, para um vindouro padrão de acumulação produtivo. É isso que está em jogo no andamento da carruagem.


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