quinta-feira, julho 16, 2009

A CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
16 de julho de 2009

ESPECULANDO SOBRE O FUTURO
Por Enéas de Souza

O pássaro de fogo

A grande questão da economia mundial, vista pelo ângulo da recuperação, e uma recuperação consistente - e não eventuais pequenas notas de crescimento – baseiam-se em pelo menos três premissas: 1) uma recuperação produtiva americana; 2) uma recuperação financeira Wall Street-Londres como diria Peter Gowan, e 3) dada as recuperações regionais das demais economias, principalmente a China, uma conseqüente recuperação do comércio internacional. Como continuo a acreditar que sem a economia americana, as coisas não se arrumarão, e que ela prosseguirá no papel de economia líder, o centro de minha análise se restringirá aos dois primeiros pontos.

Para tentar apreender o movimento dessa recuperação americana, algumas perguntas precisam ser respondidas, com a maior consistência na sua lógica econômica. A primeira delas, talvez a mais efetiva, como um tronco da árvore que se abre para muitos galhos, é a seguinte: qual é o setor que vai comandar a economia? E desta interrogação há um desdobre para outras. Teremos, então, novamente uma dominância financeira? Ou teremos, para variar, uma dominância produtiva? E se tivermos a continuação da dominância financeira, a interrogação passará a ser: teremos a mesma estrutura que vigorou neste grande ciclo econômico de 1979 até 2007? Ou seja: teremos desregulação; alavancagem excessiva; criação indefinida de produtos; crédito florescente tanto para o setor financeiro, quanto para o produtivo; teremos crédito aos produtores e consumidores do setor real, despreendido de garantias efetivas; e teremos ainda as fatídicas agências de ratings sem nenhum controle? E mais: a economia internacional se ligará à economia americana para continuar fornecendo produtos que rebaixarão o custo de reprodução da mão de obra americana?

A labareda e a engenharia

A meu ver o grande tema, mesmo olhando de perto a sociedade dos Estados Unidos, vai ser o da reformulação global do sistema econômico, vislumbrada num período largo e visando claramente dar um novo rosto à economia americana e mundial. A busca é de uma nova forma da divisão internacional do trabalho. E o que se pode encontrar, de bom senso no momento atual e nesta direção, é a combinação incipiente de uma política macroeconômica, com a presença do Estado, compatível com uma visão política de mudança dos princípios que direcionaram a desastrada era Busch. Pois, embora as questões econômicas tenham um toque de labareda, façam parte de um vulcão abrasador, me parece que o destino da realidade mundial passa por uma visão e uma engenharia absolutamente diferente no campo político. Parece que a visão de Obama é a de resolver os temas de fundo, ou ao menos, pôr em equação os múltiplos conflitos políticos, antes de propor soluções mais definitivas para divergências econômicas. Antes uma ordem política, depois uma econômica. Por quê? Primeiro porque a crise econômica é vasta e de longo desenlace: um desastre financeiro, um desabamento econômico e um desamarramento da economia internacional. Segundo, porque o equacionamento da estratégia política das questões do poder das nações, das guerras entre os países, dos destemperos do clima e da sociedade, dará norte e tempo para que a solução da economia possa ser armada. É claro que essas problemáticas, aparentemente antagônicas da economia e da política, podem normalmente atuarem separadas, mas volta e meia se misturam e muitas vezes eclodem e se resolvem juntas. São frutos da mesma árvore.

O Estado vai desequilibrar

Esta época que segue a época neoliberal terá características um pouco distintas. Antes, de mais nada, o Estado vai ter que participar – como já está participando – do desenvolvimento da sociedade. Torna-se importante que a entidade estatal e a sua burocracia tenham consciência de que a reformulação da economia passa por elas. E obviamente, que o Estado, contra a rapina liberalizante, há de ser o condutor do processo econômico, controlando as finanças, alargando a dimensão de longo prazo, e encadeando operativamente uma outra economia produtiva. O Estado vai atuar, obviamente, em favor do setor privado, contudo com um trabalho de arbitragem, entre as finanças e a produção, para que a rota da sociedade não fique presa às volúpias permanentes, e crescentemente instáveis, das finanças. E, ao mesmo tempo, e prioritariamente, uma preocupação essencial deve existir: a manutenção da democracia e das atividades públicas, e, no caso americano, com um projeto tanto para a sua sociedade nativa, quanto para a liderança dos Estados Unidos na comunidade mundial. Dito isso, o Estado, ao reforçar a esfera da produção, certamente estará alterando as relações de forças da atual sociedade. É preciso, portanto, perceber que se as finanças continuam dominando no curto prazo, as manobras de Obama, de produzir um longo prazo para a sociedade americana, são manobras de Estado que vão favorecer forçosamente a economia produtiva.

Acho que o período de hegemonia absoluta das finanças terminou. Pois há que olhar para a renovação do futuro. De um futuro diferente do atual. E ver que todas essas questões ligadas à energia, ao clima, ao meio ambiente, desfocam e colocam em suspenso a urgência urgentíssima de resolver as finanças somente para as próprias finanças. Estas carecem de soluções urgentes, mas são de uma urgência de curto prazo. Porque, na verdade, há uma urgência maior. E qual é esta urgência? A da sociedade como um todo. Cabe, então, deter, no imediato, o arco da instabilidade e da vulnerabilidade dos mercados financeiros. Já que eles emergem sempre como um objeto que ameaça contundir a sociedade. Do ponto de vista da produção e dos trabalhadores, o futuro das finanças não se decide agora. O que importa é que elas parem de incomodar, de serem problemas, e que sejam encaminhadas a um repouso, a um pousio, certamente de precário equilíbrio, mas mínimo equilíbrio, para que não perturbem as tarefas de uma longa construção do setor produtivo. Uma vez que as finanças na continuidade terão que se voltar para o longo prazo, porque estrategicamente o mais fundamental de tudo é que a política se incline para trajetória da longa duração do capitalismo. E só por essa razão é que a esfera financeira se adequará ao dinamismo da esfera produtiva. (Lembramos em passagem, que o outro lado do capitalismo, no momento, não tem nenhum projeto político alternativo, com volume político efetivo capaz de enfrentar o capital. Assim, a sobrevivência deste, passa pela acomodação das finanças e pelo triunfo da produção).

Caminhos cruzados

Pois, agora, o caminho americano vai ser este: um projeto nacional para resolver as questões da energia, do meio ambiente, do clima, e das guerras. Ele vai impelir os Estados Unidos à construção de uma trajetória que atravesse uma nova economia. Porque a necessidade de mudar a matriz energética leva forçosamente à construção de uma nova infra-estrutura da base econômica, que por sua vez vai requerer uma transformação em profundidade na concorrência intercapitalista nacional e internacional. Esta mutação da competição tem como ponto decisivo à entrada na disputa produtiva de novas tecnologias no mercado, que só serão materializadas quando novos produtos chegarem ao mercado oriundo destas tecnologias. O que significa dizer que a atual base produtiva da sociedade vai ser alterada no seu corpo, na sua estrutura, na sua forma, no seu conteúdo. E embora a China possa recuperar a sua economia mais rapidamente que a americana, na verdade as grandes inovações tecnológicas virão do estoque de tecnologia que esta detém. É dos armazéns deste porto que vão sair os barcos da nova economia. O longo prazo está mais para os Estados Unidos do que para a China. Embora o futuro do comércio internacional vá sair de uma nova trama de relações envolvendo como puxadores deste samba os Estados Unidos, a China, a Europa, a Índia e o Brasil.

Desta maneira, o que a gente pode enxergar é que sem esta tarefa de renovação econômica, a sociedade não poderá avançar socialmente, o que demonstra que o requerimento de salvação das finanças é apenas uma medida protelatória da própria finanças ou uma medida de cautela do Estado para que elas não possam obstaculizar a transformação do porvir. Por essa razão, a protelação é algo que vem da imensa resistência das finanças às alterações da realidade econômica. Esta manobra, nave sem rumo, pode ter o seu tempo, mas não se sustenta. O atual estado da indústria americana e sua liderança no mundo exigem outras soluções, dadas igualmente a dramática situação das corporações produtivas dos Estados Unidos e a atual desastrosa situação dos trabalhadores. E é por isso, que a estratégia de Obama passa por um incentivo inevitável às pesquisas energéticas e tecnológicas. E sem sombras de questionamento, pela transformação fundamental da educação, já que os Estados Unidos não tem outra saída. Tem que reverter o comando absoluto das finanças e direcionar a estrutura produtiva para um novo norte, onde o planeta seja habitável, e, portanto, estabelecer um novo padrão energético e uma nova estrutura de produção. E para tal formar uma mão de obra, em todos os níveis, vertida para essa possibilidade. Caso contrário a “América” estará abdicando da liderança mundial. O que, simplesmente, ninguém acredita que isso aconteça..

Um novo software para as finanças

Com dissemos acima, as finanças têm duas saídas. Uma, forçar com o seu atual poder, a conservação, da melhor maneira possível, das coisas como elas acontecem. Tudo isso tem sido tentado. E o setor financeiro pensa que nem corredores de 100 metros rasos numa Olimpíada: o seu negócio é correr rapidamente e vencer. Só que as Olimpíadas são mais que estas corridas breves, têm também a maratona. E a maratona é uma prova de longo prazo e de longa duração. É aqui que jogam as atividades produtivas, é aqui que se joga, na verdade, o destino da sociedade, da humanidade e da civilização. O que tivemos até agora foram as pernas curtas, pernas que correm pelo prazo rápido. Mas, esta corrida terminou. A saída das finanças é bagunçar a Olimpíada e fazer com que a competição fique só no jogo financeiro, onde o instantâneo e a instabilidade reinem e façam da sociedade um encontro excitante de papéis e dinheiro. Mas, já se mostrou que há mais papeis que dinheiro, pois estes papéis têm a substância da ficção, são valores de promessa. E são promessas que a estrutura das finanças é incapaz de cumprir. Os títulos e os ativos do mercado financeiro contêm em si o mico, ou seja, a maioria deles tem o corpo das fumaças do sonho. Os seus valores fogem da troca por dinheiro e alimentam o devaneio de tornarem-se mais dinheiro. E no seu delírio social as finanças não conseguem passar pela hora da verdade, a troca generalizada de títulos por dinheiro. Como já falava Marx e Hilferding, e compreendiam Keynes e Minsky, este capital inscrito nos títulos é capital fictício.

A outra saída, então, é um novo desenho para as finanças. Só que desta vez elas terão que estancar a atual hemorragia, e se preparar para uma nova organização do seu sistema. Sistema com uma funcionalidade diferente: a funcionalidade das finanças à estrutura produtiva. O que não quer dizer que elas não terão um papel fundamental na sua tarefa de fornecer crédito. O crédito continuará sendo a seiva da sociedade capitalista. O que as finanças, dando uma reviravolta até agora impensável, terão que providenciar é uma manobra e um pacto social para conservar na área privada esta função e impedir que sejam substituídas por finanças estatais. Pois, estando em marcha uma mudança de sociedade, quiçá de civilização, ou elas interrompem a mudança ou se aliam à metamorfose. E neste caso, considerando a atual configuração geral da luta de classes, embora tenham ainda o domínio, elas terão que ceder ao destino e se comporem com um novo mundo. (Tudo isso não exclui, apenas para complicar o panorama, um itinerário de uma crise abismal, que está igualmente embutida na atual conjuntura, um “Round 2”. Um segundo tempo da crise financeira e da recessão, uma corrida para o deslizamento no campo depressivo. Vejam os gráficos das últimas postagem do André.).

A dialética do tempo presente e do tempo futuro

Pois, aqui aparece a nossa percepção do problema. De um lado, a necessidade de uma transformação profunda, que já se pode esboçar. Mas, como disse Roberto Reich, a solução da crise é um X. Ou seja, enquanto uma economia vem abaixo, outra se constrói. Vejo assim também, quero precisar o um sal que vamos usar que talvez tenha um tempero diferente do de Reich. Claro, temos que nos livrar da sociedade que está aí. Só que ela é como um vírus que está dentro no corpo minado. É preciso nutrir outras forças em combate no coração da economia e da política. E elas só triunfarão se tivermos uma sociedade que saiba para onde quer ir. E neste sentido, não basta apenas deixar outra sociedade crescer. Não, é preciso criar uma nova. E ela está em germe na energia, no estoque de tecnologias, na transformação da tecnologia em produtos, na formação de capacitação para tal, na melhoria das condições dos trabalhadores. Mas, para chegar até lá é preciso Estado, é preciso democracia, é preciso a construção do público, é preciso que se desenhe tanto uma nova produção como um novo setor financeiro. O desafio é este: há que ter estratégia, há que planejar essa passagem, há que pôr a política – a grande política – na frente da economia, bringando contra a pequena política (aquela da chantagem, da corrupção, dos favores, da subordinação da sociedade aos interesses privados). Há que pôr um projeto em ação. E é possível que, para os Estados Unidos assumam este rumo, Stieglitz talvez tenha razão. Pode ser que para organizar a sociedade americana, os Estados Unidos tenham que passar por uma nova organização da economia mundial. E por essa razão a política clama pôr um redobrar de forças, mas atiça um terremoto maior, já que é preciso organizar também os conflitos na ordem mundial. E como os conflitos estão por toda parte, os Estados Unidos e o capitalismo também terão que ter uma nova ideologia, um novo projeto, uma nova visão das relações sociais, uma nova proposta de instituições internacionais para negociarem com o mundo. Devem estabelecer uma resultante que assinale um novo estado de paz, totalmente diferente do tempo em que estamos vivendo - um tempo de guerra e um tempo de decadência. Será isso possível? É o desafio da Hora.

(E, neste instante, onde as incertezas avultam, também devemos nos perguntar: quais são os projetos dos anti-capitalistas? Sua dialética é a do tempo presente e do tempo futuro ou enxergam o futuro pelos olhos do passado?).

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