quinta-feira, julho 02, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
2 de julho de 2009

ECONOMIA POLÍTICA DO BRASIL
Por Enéas de Souza

As medidas lançadas pelo governo brasileiro na segunda-feira junto com o lançamento do IPO da Visanet, também no mesmo dia, podem desvelar uma nova configuração do que chamo a estrutura profunda da sociedade brasileira. Ela se organiza a partir de um confronto de forças sociais, sempre em movimento, que se materializa na constituição de uma determinada estrutura econômica. Estrutura que por sua vez se desdobra e se expressa na forma como o Estado está ordenado. Claramente se percebe, que nesta estruturação, os conflitos oriundos da economia política convergem para que o Estado pratique, de maneira resultante, uma política econômica que atue sobre os bancos, as empresas, os trabalhadores e sobre a sociedade como um todo. Está desenhado, no referido movimento, um circuito dialético, que vai das forças sociais à estrutura econômica; da estrutura econômica ao Estado; e do Estado novamente às forças sociais. Neste circuito se constatam múltiplas tensões, com durações e rupturas diversas, se originam ciclos e conjunturas diferentes, cuja dinamicidade vai se alterando com as lutas das forças em combate. Assim uma configuração de política produzida anteriormente, por causa deste circuito dialético, em determinados momentos, vai se alterando, se modificando e se definindo numa nova configuração. E é o que parece estar acontecendo no Brasil neste momento, resultado de uma ruptura, a da crise atual.

De como deter a demanda que vai caindo

A crise da economia americana, que se estendeu numa crise mundial, tanto de caráter financeiro como produtivo, acabou pondo em cheque o modelo de acumulação financeira, ou o “finance led growth”. Naturalmente que o Brasil não poderia ficar de fora desta poderosa desordem. Do ponto de vista da produção, estava atrelado ao sistema econômico produtivo internacional, a famosa divisão internacional do trabalho que garantia, sobretudo através da China, um nível adequado ao custo de reprodução da mão de obra americana. Ora, no momento em que o comércio mundial despenca e vem abaixo, caindo 11%, o Brasil é fortemente afetado pela demanda externa. E tanto mais, que o país estava - por força de uma política financeira adversa à produção - com um câmbio muito valorizado. Houve uma vasta e enorme queda das exportações, mas o país, graças à iniciativa do governo, conseguiu evitar que toda a demanda agregada perdesse substância, mantendo o consumo no melhor nível possível. Foi, com toda a evidência, o efeito das isenções de impostos, provocadas por decisão do Estado no ramo de automóveis e na linha branca dos eletrodomésticos. Uma ação pronta e efetiva. Tanto, que a Anfavea acha até que com a manutenção das isenções, o setor baterá o recorde histórico de vendas. Com isso, o governo assegurou não só o bom desempenho desta indústria, como forçou um acordo também para assegurar o indispensável emprego dos trabalhadores.

Mas, uma outra parte da demanda, a demanda por investimento, não caiu, ela desabou impiedosamente. A economia brasileira apesar da sustentação do consumo, falado no parágrafo anterior, estava ameaçada de cair numa crise aprofundada. A queda do comércio externo e a diminuição vertiginosa do investimento puxariam o produto densa e vigorosamente para baixo. Nestas condições, o consumo não teria capacidade para se contrapor; logicamente, a demanda não encontraria gás e ânimo para subir. Portanto, a solução do problema da curva de investimento da economia brasileira veio novamente pelo Estado, via BNDES, por intermédio de um apoio significativo à indústria de bens de capital.

O retorno do Estado e sua estratégia

Com isso o Estado, libertando-se do aprisionamento neoliberal, passou a intervir com os instrumentos disponíveis e com medidas que não ameaçassem a segurança de suas contas. E nesta ação, combinada com posturas já adotadas pelo Banco Central, mostrou nitidamente uma determinada estratégia. Olhando bem ela pode ser definida assim: primeiro, manter uma política financeira relativamente aberta ao setor bancário e ao capital estrangeiro: juros ainda altos, embora tenham baixado; cambio elevado, mas não excessivamente, o que permite bom trânsito e acréscimos de valorização dos capitais que aqui estão e que aqui aportam; segundo: apoiar decisivamente o capital produtivo, concentrando suas ações sobre dois núcleos tradicionalmente importantes da acumulação e que tem visíveis repercussões na cadeia de valor: a indústria automobilística e o setor de construção civil; terceiro: apoiar a indústria de bem de capital, de tal modo que prepare a economia para uma recuperação do investimento, a chave do crescimento e de um possível desenvolvimento; quarto: sustentar um salário mínimo importante, manter a bolsa família e o crédito consignado e lançar um programa de casa própria para os componentes do setor de baixa renda. Enfim, abafar ao máximo as repercussões da crise sobre as classes populares.

A nova configuração de forças

O arco político que o Estado está expressando, e, ao mesmo tempo construindo, é novo. Embora esteja dividido, entre um Estado financeiro, defendido pelo Banco Central, e um Estado mais produtivo, em torno da Fazenda, da Casa Civil, do BNDES, da Petrobrás, esta nova configuração de forças assegura que o Estado consiga articular tanto o capital bancário e as finanças internacionais, como o capital produtivo e a população em geral,. Claro, as tensões estão fortemente presentes. E em determinados momentos são temerosamente relevantes e desagregadoras, mas algo se torna evidente, o governo Lula conseguiu transformar uma configuração política de um Estado puramente financeiro para uma configuração política rumo a um Estado financeiro-produtivo-popular, cujo equilíbrio é totalmente instável e está na corda bamba, mas que no momento caminha naquela direção.

Certamente, as questões e os problemas são muitos. E eles estão gritando. Requerem um novo passo no projeto brasileiro. Logo vemos que, a partir deste novo pacto social ainda em esboço, caracterizado por uma possível nova configuração de forças, há que construir igualmente um novo projeto dentro de uma nova divisão internacional do trabalho que se avizinha. Mas para isso, é indispensável que construamos novas políticas públicas para a educação, para a saúde, para a previdência social, para a cultura, para a segurança, para a energia, para a tecnologia, para os recursos naturais, para o meio ambiente, para a cidade, para o campo etc., onde o desejo de lucratividade do capital esteja, pelo menos, relacionado com interesses sociais e coletivos da nação. Estas políticas públicas serão aliadas para o desenvolvimento de uma reformulação completa na nossa política econômica consubstanciando uma nova economia política. Contudo, no fundo do cenário grita fortemente uma questão de mediação, mas uma questão decisiva: como se pode ligar uma política de envergadura estratégica com um sistema político partidário na direção da construção e execução deste projeto nacional?

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