quinta-feira, julho 09, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
9 de julho de 2009

O GALO DAS TREVAS
Por Enéas de Souza

A crise inacabada

Ressalta, assim de pronto, uma primeira questão: localizar em que ponto da crise americana e mundial nós estamos. E sem mentir, podemos dizer que, hoje, agora, temos uma presença do Banco Central (FED) extremamente ágil, com possibilidade de atuar amplamente. O que faz com que o sistema seja um pouco menos vulnerável no curtíssimo e no curto prazo do que nos primeiros dias do tombo das finanças. Podemos dizer que no momento a situação está relativamente estabilizada. Na reforma proposta pelo governo Obama o Banco Central tem a incumbência de intervir em qualquer instituição financeira, bancária ou não, desde que esteja claro que exista um perigo sistêmico. Trata-se, na verdade, de um avanço na concepção da arquitetura da área, porque por essa visão ele pode atuar em qualquer segmento do mercado financeiro, quando anteriormente só podia atuar sobre os bancos. Todavia, mesmo antes de ser enviada a proposta da reforma para o Congresso, logo na aurora dos distúrbios, o FED, por decisão política do governo, já abria linhas de liquidez, já baixava as taxas de juros, já tinha recursos para hedges, já aliviava o constrangimento aos comercials papers, etc., tudo para bloquear a crise. Importa dizer então que o FED ficou atento, colado, aos trancos e as durezas da travessia. O que ele não conseguiu, nem consegue resolver, é o ponto fundamental que atinge os bancos: a indesejada insolvência. Sim, vários economistas já diagnosticam: as instituições financeiras estão quebradas e para tal só resta uma solução: capital!

E a pergunta é a seguinte: quem é o bobo que vai meter capital num negócio que tem cara de “bichado”?
(Pausa).
Resposta: enquanto o seu lobo não vem, chapeuzinho vermelho continua recebendo liquidez do Banco Central.

Não se volta a aplicar, prefere-se a liquidez

Quando se examina a dinâmica financeira (que levou à crise), a gente percebe que não há possibilidade de reacendê-la, de colocá-la novamente em prática, que é o sonho das finanças. Em economia não se retorna ao que já passou. Um passado pode inspirar medidas no presente, mas este presente nunca será igual àquele passado, a economia é sempre outra. Então, os pontos em que se assentavam as finanças não se repetirão mais. O que não quer dizer que as finanças deixaram de dominar e que elas não conseguirão instalar alguma construção econômica onde terão uma participação importante. O problema é que os elementos que proporcionavam aquela dinâmica efetiva estão distantes deste setor. Por exemplo: o capital pode estar abundante em alguma área, financistas podem ter dinheiro, mas eles não se dispõem a colocar os seus recursos em alguma aventura mais arriscada. Até experimentam, como Buffet e o próprio Banco da China. Mas, como disse uma vez Roberto Campos, o capital é covarde, e a qualquer sinal de embaraço, ele fareja a cilada e foge. Foge para a velha máxima de Keynes: na hora da fogueira, o que interessa é a preferência pela liquidez.

A engrenagem despedaçada - Parte 1

Então, o primeiro problema é capital. O segundo – derivado deste – é o crédito. Ou seja, quem prefere a liquidez, não empresta. E a economia capitalista, já falava o velho Schumpeter, é creditícia. E se não há empréstimos, a possibilidade de alavancagem do sistema torna-se reduzida, ainda mais com o Banco Central olhando e controlando a questão do risco sistêmico, mesmo quando bota muito dinheiro e a custo zero. E, naturalmente, o crédito é tanto problemático para empresas financeiras quanto para as corporações produtivas, estas que estão assoberbadas com bancarrotas, com a reorganização da produção, com a queda das suas demandas, seja pela desconfiança do consumidor, seja pelo desemprego, seja pelo endividamento das famílias. Então, a economia está com o pé na trava e o carro das atividades não pode se acelerar. Efetivamente, não há aceleração; na melhor das possibilidades, há uma não-inspiradora desaceleração. Não há crédito, não há alavancagem, não há dinamismo.

A engrenagem despedaçada - Parte 2

O grande problema para o desenvolvimento deste sistema financeiro, no momento, é a carência de produtos. E uma das suas maiores dificuldades é que a securitização não está funcionando como antes. Para se entender bem, cabe salientar que a securitização é a capacidade que tem uma instituição financeira de emitir um título em cima de um bem ou mesmo de um outro título. No caso do bem, o exemplo mais luxuriante são as hipotecas imobiliárias. No caso de títulos sobre títulos, podemos citar as hipotecas imobiliárias que dão origem a outros títulos, por exemplo, os famosos Residential Mortgage Back Securities. Ou seja, como é que o sistema financeiro vai arrumar bens ou títulos para sustentar uma nova festa do carrossel financeiro, depois de tudo que aconteceu? E com a economia desabando! Claro, o Goldman Sachs e seus companheiros já estão falando que estão arrumando uma nova forma de securitização. Até pode dar certo, mas convenhamos que o que se espera é que ela não vá muito adiante. Não só porque o mecanismo de securitização está sob suspeita, mas porque o capital é escasso, falta crédito, prefere-se a liquidez e o apetite de risco está próximo de zero. É claro, que se houver um fogo para levantar o balão, não tenha dúvida, já tem muito financista aí para tentar levar o barco adiante. Parece que é mais um boato, mais um rumor, mas uma notícia para ver se anima a moçada que espera sempre ganhar um dinheiro fácil. A meu ver, nada indica que as coisas vão recomeçar!

A engrenagem despedaçada – Parte 3

O interessante é pensar que a securitização também funcionou com títulos oriundos de títulos sobre mercadorias ou serviços. Ora, como a economia está em baixa, como a produção está desanimada, o que importa verificar é que a economia produtiva e a economia dos serviços não estão dando motivos para uma retomada da demanda e, por conseguinte, as possibilidades de reencentar a securitização com novos produtos são mínimas. E claro, não podemos esquecer, que há ainda um problema grave no fundo de tudo isso: quando se examina a securitização com automóveis, cartões de crédito, com prédios comerciais (shoppings, hospitais, supermercados), etc., muitos destes títulos securitizados ainda não foram pagos. Ou seja, pode haver uma segunda geração de ativos podres, de ativos tóxicos. E essa possibilidade não está descartada por analistas que tem um conhecimento maior da situação. Então, desta forma, a questão se avulta; não só a crise não passou, como pode retornar com maior virulência, uma virulência depressiva. O que se pode dizer é que a economia está num estágio de descanso. Voltando à minha metáfora da crise, que já falei em outros textos, a metáfora da escada, nós só podemos dizer que chegamos neste ponto do tempo a uma parada, a um piso maior, a um degrau mais largo, a um patamar mais amplo. E que ninguém tem certeza onde se está, porque as coisas financeiras ainda se encontram no escuro. Se o próximo lance da escada da economia desce ou sobe, ninguém sabe. Só a luz quando acender vai nos dizer para onde vamos. A revelação está no próximo degrau.

A engrenagem despedaçada – Parte 4

Quando se percebe que há um emperramento da economia financeira, que os mercados não fluem, pois não tem vento de popa; e quando se percebe que a bolsa e as commodities são hoje dominadas por especulações pré-fabricadas ou descuidistas; a gente vê que o desarranjando das finanças é alto, e que o sistema não obtém confiança dos aplicadores para prosseguir e crescer. Nesse ponto, a forma de consertar a engrenagem – a sociedade e parte do governo já sabem – é a regulação. É exatamente contra isso que lutam desesperadamente os setores das finanças. Porque estes continuam envoltos no seu sonho de uma noite verão. No entanto, agora é inverno para as finanças. E a confiança dos aplicadores só voltará se houver confiança não apenas nos títulos, mas também nas entidades financeiras, nas entidades e agências reguladoras, em toda a arquitetura do sistema. E nada mudou efetivamente. Existe apenas uma atuação mais ampla do FED, no seu voluntarismo de controlar alguma possível fratura do mercado. De outra parte, as agências reguladoras, mesmo ainda em conflito, se tornaram um pouco mais rígidas. É que adentramos num compasso de espera no Congresso pela a aprovação, com emendas ou não, do “Finantial Regulatory Reform”. Olhemos bem, as finanças tentam se mexer, mas a situação não se alterou. Há um espaço vazio aguardando o debate e a solução política. E a questão é só uma: se for promulgada uma regulação que não convença, a sociedade se manterá fiel e passiva?

Qual é a bola da sorte?

De qualquer modo, o que temos em questão é o funcionamento das finanças tal como conhecemos nos últimos anos. Ela vai ter que se alterar. Primeiro, porque o retorno da confiança não está acontecendo. Segundo, porque quanto mais o tempo passa, se elas têm mais tempo para resolver seus problemas, a sociedade também tem tempo para pensar se estas são as finanças que ela quer. Então, entramos num jogo social intenso, numa luta mais ampla do que os combates dentro do Executivo e das batalhas legislativas. As disputas entram num plano social mais candente e mais questionante. A pergunta vai sair da interrogação sobre as finanças e passar para saber se é esta a sociedade que as pessoas querem? Não estou falando de mudança do regime capitalista. Estou dizendo que elas estão pensando se é este o capitalismo que elas querem. E não será de estranhar porque uma sociedade como a americana, que está se aproximando de 10% de taxa de desemprego, deve estar pensando e conversando para ver se deseja o retorno do mesmo esquema que a afundou.

O aparente festejo

As finanças continuam achando que foi só um solavanco, quem sabe um pequeno soluço. Leia os artigos dos cantores do sistema, observe as páginas dos bancos e das agências de ratings. A tentativa é de tocar aquela música do “sacode a poeira e dá a volta por cima”. Mas, nem tudo está igual. De fato, o triunfo das finanças foi algo absolutamente notável. A população, mesmo a mais desfavorecida, estava pensando que nem elas. Só que algo se rompeu, a pele rachou, o calcanhar teve uma calcificação. E o capitalismo vai ter que mudar. Fala-se já num movimento de governança internacional, na busca de uma regulação financeira mundial, na tentativa de reformas sociais leves, na ajuda aos países africanos, num cutucão no dólar através dos países emergentes. Até já tem alguém propondo uma social democracia globalizada e falando em alterar a posição da ONU. Isto é muito incipiente e muito novo. E ainda não existem ações concretas e muito menos definitivas. Mas, aquela idéia do Estado Mínimo, aquela idéia de Estado ineficiente, aquela idéia de homens vencedores, aquela idéia que as finanças faziam crescer o mundo, parece que foram postas num balde de gelo ou despejadas num cesto de roupa suja. Isto significa que o maravilhoso mundo neoliberal e sua ideologia foram colocados na lixeira deste capitalismo, que, obviamente, tem fôlego e gás para continuar. Mas não no mesmo ritmo de viagem, pois o rumo e o próprio ritmo devem ser notoriamente outros. E naturalmente os melhores pensadores deste sistema – de Krugman à Stieglitz, de Martin Wolff à Nouriel Roubini, de Aglieta à Orléan – já perceberam, faz muito tempo, que é preciso achar uma rota de saída ou uma rota de fuga. E todos sabem que a política vai ter que dar uma boa mão para a desastrada economia. Se não, a sociedade entrará no aparente festejo do galo das trevas.

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