quinta-feira, setembro 10, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
10 de setembro de 2009

BALAIO DE OFERTAS
(na volta das férias americanas)
Por Enéas de Souza


Hoje vamos comentar o trivial variado que está acontecendo na economia americana e mundial. O título da matéria poderia ser “Estratégias e Estruturas”. Pois é disso que trata nosso balaio. Mas, como é balaio – balaio de ofertas – os itens vão saindo a medida que vamos pegando-os. Eis as ofertas que olhamos para hoje.

Desorganização monetária mundial

O mercado monetário mundial está mostrando e revelando que o dólar continua a sua espiral descendente, implicando que a economia americana continua numa zona problemática. E que vivemos, nestes dias, um dos efeitos desta debilidade, sobretudo, olhando a figura do dólar na função de reserva de valor mundial. Naturalmente, que ele continua “prestigiado”, que ele continua a ser a moeda mais importante do planeta, embora a locomotiva da economia americana esteja sofrendo uma demora e uma parada da recessão. E, obviamente, os americanos não estão completamente inertes, nem deixam de buscar uma solução e uma retomada necessária. Só que, claro, tudo está incerto, e nenhuma direção parece definida. Ninguém, em verdade, sabe para onde vão os Estados Unidos. E o que ocorre na sua trajetória geral se reflete na oscilação da sua moeda. Ou seja, essa oscilação mostra a fraqueza atual de sustentação da economia americana, seja na sua face financeira, seja na sua face produtiva. E como uma moeda é um reflexo da economia, a metamorfose incerta de sua navegação, acaba por revelar uma igual incerteza na moeda. Por isso, não adianta o coro apressado de que “crise já passou” para que o dólar volte a ser forte - o próprio mercado está desmentindo.
(Ué! Alguma dúvida? alguma surpresa? Não é o mercado que regula a economia? Não há super-herói que segure uma moeda, só a fortaleza da atividade econômica.E a americana desabou.)

E Midas veio dar uma chegadinha no capitalismo financeiro?

Esta incerteza monetária, porque não dizer também fraqueza, se reflete e emerge em outros registros dos fenômenos econômicos. Mas, para a coluna de hoje, vamos destacar pelo menos dois deles: a expressiva elevação do preço do ouro e a tentativa da China de colocar títulos no mercado, expressos em renminbi. Ora, o primeiro aspecto é claro: o dólar se enfraquece na corrida monetária e o cavalo da velha relíquia aponta o seu rosto na curva. Ou seja, a preferência pelo ouro pode ser o indício de que a preferência pela liquidez em dólar comece a desconfiar da moeda na qual sempre se ancorou. Então, o velho equivalente geral das trocas, porto monetário de outros tempos, retorna como um antigo herói e como ator do teatro financeiro atual. Ele sabe que sua glória, em termos de financeirização, é passageira. Porém, se ela é efêmera, não deixa de ser inquietante, porque nada mais expressivo do que uma corrosão no valor da moeda americana. Com esse desgaste, anuncia-se que o mundo econômico tende a preferir não mais uma moeda financeira, mas, algo mais duradouro fisicamente. Cabe ver, então, este paradoxo: de um lado, assinala-se que o ouro poderá ocupar por um período limitado, ao menos, a posição de reserva de valor. (No momento, ocupa apenas a posição de substituto para os desesperados, para os especuladores ou para os precavidos). E, por outro lado, sendo uma mercadoria, que tendo a durabilidade como propriedade, é capaz de ocupar, no instante de forte crise do capitalismo das finanças - exatamente por essa característica - o posto de moeda universal. Embora apresente obstáculos, exibe uma desvantagem notória quanto ao aspecto de mobilidade e transporte. O paradoxo dessa situação alimenta uma idéia não bizarra, nem surpreendente, de que a crise monetária que se aventa indica que estamos num ponto de transição do sistema econômico, onde nada está claro, onde tudo está por se decidir. Assim, falam alto, nestes instantes, os especuladores, levando de arrasto os desesperados e os assustados precavidos. Claro, por trás, ao menos nesta hora, está a astúcia da mentalidade especulativa, sempre exacerbada no capitalismo. A casa de jogo da moeda americana continua freqüentada, mas tem gente que pensa que a economia do Tio Sam vai pegar fogo. E daí buscam fugir do dólar. E daí começam a apostar contra.

A China quer a desconstrução da universalidade do dólar?

Temos, então, os chineses. Eles são pelo dólar; é mais fácil; eles estão abarrotados desta moeda. Sempre pensaram que iam pegar os americanos pelos fundos, mas de repente perceberam que estes é quem tinham entrada pela porta trazeira da China. Mas, a China é um país onde tem Estado, onde os dirigentes estatais jogam a longo prazo. Constatado que o dólar está em trajetória de enfraquecimento e que o governo americano faz corpo mole (e que eles, os chineses, estão cheios de dólar, depois de terem manejado/manipulado a sua moeda todo o tempo), a China começou a pensar numa outra variante: projetar a possibilidade do Yuan ser uma moeda de transação internacional. Se querem ser uma economia sub-líder, na cola dos Estados Unidos, é fundamental ter uma moeda apreciada, negociada nos mercados, e não regulada pelo próprio Estado. Duas são, em verdade, as condições para uma moeda financeira no mundo capitalista contemporâneo. De um lado, para além das funções de meio de circulação e medida de valores, uma moeda deve cumprir a função de reserva valor. Para tal, ela requer que o Estado que a sustente, tenha que garantir o seu valor através de dois pontos econômicos: da fixação da taxa de juros pelo Estado e do lançamento de títulos assegurados pelo tesouro do país, negociados em mercado. É isto que define e garante o valor da moeda financeira de um país. E que no confronto com outras moedas possa ser uma moeda reserva de valor internacional. E é isto que China está começando a fazer. Tudo, no caso, fortalece a idéia de que o dólar possa inaugurar um segundo ato da crise americana. No roteiro dos acontecimentos pós-suprimes, pós embaraços dos ativos tóxicos, pós-emperramento da securitização - dadas as complicações atuais do mercado financeiro americano e internacional - ele se encontra na eminência de um perigo. E se acrescentarmos no horizonte de adversidades as perspectivaa de um aumento do déficit fiscal e da dívida americana, ele certamente entrará numa faixa crítica. A avaliação da China é que o dólar está se aproximando deste ponto dramático. E o gesto de busca da construção de uma moeda internacional, preparando inclusive o lançamento de títulos públicos chineses em renminbi, avizinha um período de desconstrução do dólar como moeda universal. Não há ainda uma inevitalidade, nem está assegurado que o rumo será nesta direção. Todavia a seta destes acontecimentos diz que no fim deste caminho, definidos pelo aumento do ouro, pel surgimento de uma moeda chinesa e por possíveis problemas fiscais dos Estados Unidos, será o surgimento de uma forte desordem aos mercados monetários internacionais , no estilo dos anos 70, quando dólar, o yen e o marco alemão disputavam a figura principal no palco das moedas de então.

O Estado e as partes desatadas

Falamos da desorganização monetária, mas a conclusão a que estou chegando é outra. Uma economia quando fica entravada em múltiplos aspectos envolvendo o sistema bancário, o sistema financeiro, o sistema produtivo, o sistema tecnológico, e sua conexão com o sistema financeiro internacional, acaba por encontrar distúrbios na área da moeda. Trata-se de um retrato que assegura que as articulações feitas na sua constituição anterior se tornaram cariadas, arruinadas, desmanteladas, e algumas delas, irreversivelmente destruídas. Ora, quando isso acontece, ou seja, quando algumas partes da economia que se ligavam com outras já não tem condições de serem reatadas, o que é que se pode pensar? É preciso projetar a renovação das estruturas passadas. Há que perseguir a reinscrição de novas relações na economia, e não apenas concertar ou alterar uma ou outra ligação. Na verdade, como dizia o mestre Ignácio Rangel quando uma economia desata e quando numa ponta fica uma parte cheia de recursos financeiros e no outro canto, na outra ponta, permanece uma área deserta, abandonada de recursos, o que é fundamental fazer é achar uma forma de reatar esses lados, essas áreas. E isso é um trabalho que passa pelo Estado. E convenhamos amigos, tal não está sendo possível por vários motivos. Dois exemplos: na área financeira americana houve grupos que ficaram com o capital valorizado e/ou doado pelo governo, e só querem largá-lo apenas com vantagens imensas, e, sobretudo, não querem – pior que tudo - transformar a forma como esses capitais fluíam e se robusteciam. É o caso de grupos como o Goldman Sachs, que se acham vencedores e mais espertos que os outros. E que incentivam as finanças e a diversos setores a resistirem a uma metamorfose. O segundo exemplo é a China, abarrotada de dólares, que está disposta a, feliz da vida, aceder à economia americana, Mas, os americanos não querem por razões estratégicas, por razões econômicas e por acharem, que no fim da cena vão dar uma capoeira ou aplicar um golpe de mágica nos mandarins. De qualquer modo, não há Estado, com influência prioritária das finanças, que tenha suficiente vontade política para unir os recursos de uma ponta com as áreas carentes de recursos da outra. Sob certo ponto de vista, a economia mundial só vai sair dessa situação, quando o(s) Estados puderem combinar as partes soltas das estruturas econômicas. E, até agora, só apenas a China, dos países desenvolvidos, está encaminhando as coisas para essa nova configuração.

Não haverá paz social

Dito isso, o que percebemos é uma necessidade estrutural e de lógica econômica que a formatação anterior vai ter que mudar de uma forma ou de outra. Quem sabe teremos toda uma nova economia globalizada. Gordon Brown vem até falando sobre isso, da sua forma diplomática, aliás. Mas, vejamos: o sistema bancário com esse permanente “credit crunch” não pode ficar com está. A securitização terá que encontrar mecanismos de controle para que funcione. A regulação que poderia controlar e vigiar a alavancagem, a dita securitização, os derivativos, as agências de ratings, a recuperação do crédito generalizado, terá que passar pelo pente fino do Congresso, cada vez mais conservador e não apenas por causa da representação republicana. Então, o que se percebe é que na boa vontade das finanças nada vai mudar. Um dos problemas graves que surgem no horizonte é esta terrível taxa de desemprego, que pode ultrapassar 10%, um pouco mais adiante. Ora não haverá paz social sem emprego e sem produção. E não havendo produção, nem emprego, é extremamente complicado que as finanças possam desenvolver e desembaraçar aqueles problemas citados acima. E o enroscar disso vai encrespar a sociedade, o congresso, o governo e as relações internacionais. E na proscênio de tudo isso, como a prima dona desta ópera, o primeiro personagem citado, o dólar.

A troca do modelo econômico

Desta maneira, se o que estamos descrevendo tiver algum parentesco com a realidade, a necessidade de transformação do antigo e atualmente esfarrapado modelo de acumulação financeira vai ter que acontecer. Mesmo que seja por outro ainda sob o comando das finanças. Mas, um modelo econômico não se troca simplesmente como se troca um pneu, uma lâmpada ou um sapato. A troca é um processo social dolorido, cheios de racionalidades e irracionalismos, de lutas entre os próprios grupos sociais vencedores, mas em desacordo. Nesse sentido, as finanças já começaram a sua hemorragia interna e os conflitos terão que aumentar severamente para que as forças que querem a mudança dêem o tom das políticas econômicas. Só que a sociedade americana – e não apenas o Congresso – está voltando de férias. E o resto do mundo, também está retornando das suas férias de verão ou de inverno, conforme o Norte ou o Sul. E, todos, com ânimo ou com raiva ou com esperanças, estão voltando para o combate. O planeta neste agosto e neste começo de setembro estava “too quite”. A sessão vai recomeçar. Já daqui a duas semanas teremos, em 24 de setembro, o G-20, em Pittsburgh, Kansas, o que é capaz de pôr mais gasolina, mais idéias e mais antagonismo no fogo da desordem financeira. Sem dúvida se estes encontros continuarem sem decisões e ações concretas. O jogo indica que novas emoções estarão em campo. E uma hipótese é que se dê mais um passo na desordem econômica geral. Pois, não é demais repetir: o mundo precisa de um novo sistema financeiro, requer um novo sistema produtivo, almeja uma nova interrelação econômica entre os países e tem uma necessidade profunda de uma nova ordem na proteção social da maioria dos habitantes do planeta. Já dissemos: toda mudança se faz com desordem, batalhas e recomposições. E o importante é saber que quando muda a fisionomia das estruturas econômicas e políticas, os lugares não permanecem os mesmos, nem as posições prosseguem idênticas. A China, por exemplo, continuará numa segunda posição, mas certamente o seu lugar será outro. E ela trabalha para isso. O Brasil, quem sabe, esteja melhor preparado para assumir estratégicamente o papel de um médium player com mais presença internacional e mais claro posicionamento na ordenação econômica do mundo. Temos que considerar igualmente os Estados Unidos. Certamente, o mundo não mudará sem eles, mas provavelmente não ocuparão mais o posto de país hegemônico e absoluto dos anos 90. Teremos um novo mundo . Só que não se sabe se será admirável, como pensavam, em outros tempos, os futuristas, poetas e artistas plásticos. Também não se sabe se nãp colheremos “O ovo da serpente”, que fez figura e história na imagem cinematográfica de Ingmar Bergman. Outros poderão pensar que o tema penderá para um melancólico olhar de despedida, como no “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Seja como se queira, uma mudança está inserida desde logo nas adivinhações do tempo que está para chegar. A hora do parto ainda não está prevista. De qualquer maneira, o título do livro de Paul Auster “O Homem no Escuro” dá o tom do momento, o tom da mais incrível incerteza.

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