quinta-feira, agosto 20, 2009

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
Coluna das quintas
20 de agosto de 2009

A ENTRESSAFRA
(Ou: Obama está à altura do cargo?)
Por Enéas de Souza

Hoje gostaria de apresentar um matiz da atual crise financeira mundial. É uma análise dos acontecimentos econômicos recentes. Ou melhor, na verdade, a análise de uma paralisia social normal das sociedades, o período de férias, o verão americano. No caso, provavelmente, um longo verão, onde emerge, como um tumor quase indomável do neoliberalismo, a resistência à solução de questões sociais. O presidente Obama ainda não conseguiu aprovar a health reform, encontrando oposições vigorosas e diferenciadas entre os republicanos e os democratas. Esta proposição está inserida no bojo dos problemas e dos dilemas do destino da crise financeira americana e mundial. Estamos numa hora de transição, ao mesmo tempo, que já decorreram alguns atos da experiência Obama. Tento aqui esboçar um desenho desta situação.

O sentimento progressivo

Estamos chegando, nestes dias, à constatação evidente de um desgaste do presidente dos Estados Unidos. As finanças, embora estejam sofrendo a ameaça de uma crise interminável e apareçam mal vistas pela população, continuam enfrentando, com mentiras, notícias e bônus espetaculares aos seus dirigentes, os solavancos que sofreram desde 2007. No primeiro momento foram salvas pela administração do Estado, tanto de Bush como de Obama. E a expectativa era de um enquadramento deste setor econômico à política nacional. Porém hoje, pelo contrário, há um sentimento progressivo da população de que elas contiveram a sua queda e continuam mandando no país. Evitaram, bem no começo da crise, os primeiros e fortes movimentos em favor da nacionalização dos bancos. E foram além. Arrumaram um bloqueio para este processo e marcaram pontos, constituindo na entrada do presidente democrata um terceto de administradores públicos: Geithner, Bernanke e Summers. Administradores, que se não são dóceis aos objetivos da área financeira, são integrantes do governo que não vão contra o destacado setor. Estes três, cabe reconhecer, agiram com paciência, apararam os golpes e estão dando pano e tempo para a reformulação de métodos, produtos e práticas do campo financeiro. Com isso, Obama está visivelmente em desvantagem. E os americanos em geral, sentindo o odor de ludibrio, vêem a situação com estupefata inquietude. Constataram que, depois das finanças terem causado um forte prejuízo a vários segmentos da economia, inclusive a elas próprias, o efeito do desastre financeiro e do conseqüente fracasso produtivo se desdobrou num extenso e rompante desemprego. E pior: os homens e as mulheres, os jovens e os velhos, se vêem, nos dias de hoje, sem perspectiva quase nenhuma de retorno ao mercado de trabalho.

(Perguntam, então, os analistas da economia e da política: “É justo o desgaste de Obama?”)

Para quê bem estar?

De outra parte, a ideologia neoliberal foi rasgada, mas ela está sendo cozida com linhas conservadoras. Busca-se colocar um basta a qualquer proposta onde o Estado entre para propiciar à população uma melhor assistência e um melhor bem estar. Vejam-se as tremendas dificuldades atuais de Obama nas questões vinculadas à saúde, à health reform. A melhor estratégia para o neoliberalismo é um ataque a projetos desta ordem, como petardos contra ao que os conservadores chamam ridiculamente de “socialismo”. Como sempre o apelo é à força do individualismo e à aversão dos americanos a qualquer intervenção do Estado. Naturalmente, as ajudas de liquidez, os aportes de capital aos bancos, a promoção de fusões e aquisições de instituições financeiras por outras entidades do ramo, são processos normais em benefício da sociedade... E, de tempos em tempos, o velho realejo da “crise já passou”, do anúncio de uma reanimação da Bolsa, de notícias pouco claras de que os capitais estão ganhando muito dinheiro no estrangeiro, etc., etc. A mídia fica majestosa de tanta euforia. Até já falaram que a China vai reanimar a economia produtiva americana. Enfim, a melodia não para de tocar. Só que, volta e meia, aparecem informações verídicas mostrando como o mundo continua mais para a cor negra do que para a cor de rosa. Este ano já quebraram 77 bancos entre pequenos e médios - um dos últimos foi o Colonial BancGroup Inc.. E, numa nota postada por André Scherer, revelando aqui no Econobrasil que os Fundos de Pensões estão fugindo das bolsas, acabamos por saber da escandalosa novidade de que os Fundos não estão mais indo na onda dos especuladores. Com isso, retornam ao ambiente dos negócios, momentos bastante sombrios. Daí a secreta convicção dos conservadores: como é que se pode preocupar com o bem estar?

O apoio da fantasia

Mas, a música “country” dos conservadores continua a aflorar nos ouvidos dos americanos. E dada a oscilação continuada da economia financeira, dada a lentidão de qualquer recuperação da economia produtiva, dado o crescente endividamento do Estado e suas dificuldades fiscais, dada a ausência de progresso nas questões sociais, o desgaste está pegando o pé de Obama. Este verão americano está quente de insatisfações. E a diminuição das atividades por causa das férias dá uma sensação de paralisia e de desgaste do governo e do presidente da América do Norte. No entanto, algumas notícias e boatos especulativos aparecem: além daquelas 77 instituições bancárias, fala-se em novas quebras de pequenos bancos. E a entidade que segura os depósitos nos Estados Unidos, o FDIC, está ficando sem dinheiro. Analistas apontam que os ativos tóxicos continuam brilhando no escuro. E mais ainda, o susbstancial: nada foi decidido em termos da arquitetura, da regulação, da alavancagem, da securitização do sistema financeiro. O Finantial Regulatory Reform vai entrar em votação no retorno das férias. Tudo isso segue diminuindo o apoio a Obama. Trata-se de um jogo muito forte, onde as finanças, mesmo não se recuperando, nem vendo claramente uma fenda nas nuvens do céu, têm forças suficientes para - mesmo com a continuação do “credit crunch”, da falta de crédito, da escassez frontal de capital e de uma possível ameaça ao dólar – continuarem a exercer um cerco ao presidente. E, sempre, sempre com o apoio decidido, laborioso, grotesco, invasivo, fantasioso, da mídia mais obstinada e subsidiária das finanças.

A véspera da semeadura

Seguramente, estamos na entressafra, o jogo está aparentemente suspenso, estamos num intervalo - e as finanças não estão perdendo, nem Obama está ganhando. E este empate, na verdade, está mais para as primeiras do que para o segundo. O retorno da contenda vai nos conduzir ao segundo tempo do ano inaugural da atual presidência. Há um teatro em andamento: a peça é fingir que vamos regular para não regular nada. O que se quer mesmo é fortalecer a proteção das finanças. Pois, se financistas do tipo dos do Goldman Sachs não querem nenhuma fiscalização, nenhum avanço no sistema, já que eles serão um dos vencedores do tradicional processo de concentração e centralização do capital, existem outros que pensam aproveitar a oportunidade para beneficiar o setor como um todo. Já falei sobre isso. Num olhar um pouco mais demorado sobre o Finantial Regulatory Reform, a gente pode verificar um cuidado para preservar e defender o setor. Uma atenção para alcançar e produzir uma solução, a mais imediata possível, quando ocorrer um risco sistêmico em qualquer parte da economia. Uma busca de uma coordenação e uma informação maior entre agências reguladoras parciais do sistema, etc. Ou seja, as finanças se preparam para fazer do limão da regulação o refresco de um maior autocontrole das próprias finanças. E tudo, aqui a perfídia da reforma, com ajuda do próprio governo e do próprio Estado. Este é o verdadeiro projeto.

A interrogação mais íntima e mais pública

Ou seja, não se trata de um adeus às armas por parte da população, mas se trata de verificar que este contra-ataque das finanças poderá encontrar sucesso tanto para a retomada da economia financeira, quanto para a desqualificação dos opositores desta esfera. Pois, é mais que óbvio, as coisas estão sendo pensadas por agora, há todo um período de férias para refletir, para encontrar alianças, para buscar uma pausa que permita novas idéias e promissoras propostas. É o período da entressafra, a véspera da semeadura. O primeiro ano de um governo é sempre complexo. Há a busca do estabelecimento de um padrão de atuação. Em vista do executado no primeiro semestre, a pergunta que atravessará todo o segundo período de 2009 é sobre a capacidade de Obama de enfrentar os grandes desafios da sociedade americana. Continua o mesmo problema da época de sua posse: não basta ser Clinton, nem Kennedy; ele terá que ser a soma de Roosevelt e Lincoln. Portanto, a interrogação mais íntima e mais pública na América do Norte se modificou um pouco, está agora mais inquietante: podem os Estados Unidos ter a esperança de que Obama vai chegar lá?

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