quarta-feira, abril 11, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A SALADA DE FRUTAS:
FINANÇAS E OBAMA,
DEMÓSTENES E MÉLENCHON

Enéas de Souza
12 04 2012


Não se pode fazer nenhuma análise redutora, mas há que tentar relacionar a com b, finanças com política. E cada caso tem a sua singularidade, mas toma nuance no contexto global. Digo bem se falo de um clima, de um tom, de uma atmosfera. A ascensão das finanças trouxe a liberalização do regramento ético no campo privado e no campo público. Não que todos se pautassem por essa “norma”, mas ela passou a ser um dos modos de navegar no mar dos homens. Paulson, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, no momento anterior da crise financeira, ele que era da Goldman Sachs, quis tirar da concorrência o Lehman Brothers. Tocou fogo no concorrente, acabou botando fogo no sistema. E o mais irônico é que as finanças usam sempre a idéia de “risco sistêmico” para salvar os próprios bancos. E Paulson, que era do time de inventores da ideia, pensou primeiro em derrubar o concorrente, antes de pensar no sistema. Acabou vendo, certamente espantado, olho brotando das órbitas: é, o “risco sistêmico” existe!

Então, temos dois fatos do sistema hegemonizado pelas finanças: de um lado, a criação de um clima ideológico convulso e atroz – no caso, vingança e crise financeira; de outro, o fato que uma etapa do capitalismo não cai assim no mais. E é pela política que ela vai se deteriorando, vai se arranhando, encontrando as suas mazelas até se transformar e desaparecer.

COM QUEM ANDAM AS FINANÇAS

Pois, no Brasil, temos a figura exemplar de Demóstenes Torres. Organizou-se como o campeão da moralidade, usava o linguajar do direito com uma retórica ímpar, jurídica, geralmente como promotor de acusação. Ganhou público, audiência, tornou-se uma figura nacional. Muitos viam nele uma espécie de tribuno romano dos trópicos, sempre preciso nas palavras, sempre contundente. Um Catão! E a escuta das pessoas, sobretudo de classe média, estava sempre envolta na glória dos estádios da moral cívica. De repente, o balão se tornou cativo, percebeu-se que Demóstenes estava grudado com “a contravenção” como muitas vezes se chama no Rio, a zona onde opera Carlinhos Cachoeira. Pois, há que reconhecer com essa ligação que o lado obscuro do dinheiro está no coração do sistema das finanças.

Pensam que não? Caro leitor, lembre-se de 11 de setembro das Torres Gêmeas. Houve uma revolta imensa nos Estados Unidos. E o Congresso Americano sabedor da fortuna de Bin Laden quis fazer uma investigação, rastrear o dinheiro ilegal, chegar até os paraísos fiscais. Chegaram? Claro que não. O Congresso Americano rejeitou a busca, simplesmente porque haveria o olho público sobre todo o sistema. Seriam descobertos todas as falcatruas, todos os movimentos honrosos do dinheiro das finanças, do crime organizado e do terrorismo. E claro da própria política. O leitor já adivinhou ou já sabia: o Congresso não aprovou a medida. E houve votos dos republicanos e houve votos dos democratas. E para se ter uma ideia do alcance, a Enron, uma empresa de energia que capotou na crise americana de 2001, tinha centenas de empresas fantasmas aplicando dinheiro na terra da multiplicação fácil dos ditos paraísos fiscais. É o fenômeno casto da multiplicação dos pães. Como dizia um velho sábio da economia, o capitalismo é sempre dinheiro gerando mais dinheiro. Daí o caráter especulativo das finanças. Para ela, tudo é chance para potencializar infinitamente o seu capital. Legal ou ilegalmente.

QUANDO O CINEMA CONTA A VERDADE DO SISTEMA

Se vocês viram um filme de Martin Scorsese, “Os infiltrados”, as coisas estão mostradas ali. O personagem de Jack Nicholson, chefe mafioso de um grupo ilegal, habita a farsa, a riqueza, o crime, a vingança, o domínio de tudo, jogando nos dois lados: é o terceiro do sistema. Mas, o terceiro corrupto. Domina o crime e domina a polícia. Tenta, como um bicho esperto e traidor, aprisionar o outro de todas as maneiras. O outro como servo de si. E essa atitude atravessa toda a sociedade, todos estão vestidos do manto da mentira, do cinismo, do duplo jogo. Duas cenas são marcantes: Jack Nicholson diz quando desconfia da traição de Leonardo Di Caprio: “esta é uma sociedade de ratos”. E no final do filme, emerge na janela do apartamento de Matt Damon, após ter sido assassinado, um rato atravessando o espaço claro da vidraça. E lá no fundo se vê o Congresso Americano. Mais não pode ser dito. E temos presenciado nesses últimos anos a crise do governo Obama, imobilizado pela Câmara dos Deputados. Bloqueio no orçamento, comissão bipartidária controlando o déficit do governo americano, e fixação de um teto para a dívida pública. Tudo em nome da moralidade. Tudo gerido pelos lobistas do sistema. É possível achar que a metáfora da cena final de “Os Infiltrados” esteja certa.

O ESTADO DO BEM-ESTAR ESTÁ EM CHAMAS?

Na encruzilhada do eixo hegemônico americano (Estados Unidos, Inglaterra e Europa) o movimento das finanças provocou uma crise europeia imensa. E, nessa crise, houve o progressivo tombo, ladeira abaixo, da França. A direita assumiu o poder imperialmente, Sarkozy fez o governo dos ricos e procurou desmanchar o Estado de Bem Estar em todos os pontos. Mas, a França é uma sociedade relativamente politizada. Desde os tempos de Mitterand – e isso aparecia nitidamente nos governos de Chirac – ela sofria com uma queda econômica, com uma queda política, com uma queda cultural visível. Disse-me um professor francês, lá pelos anos 90: “Ah! meu amigo, a cultura na França está decadente”. Tinham morrido Sartre, Lacan, Foucault, Deleuze. E Lévi-Strauss estava na hora da partida. Tinham aparecido Baudrillard e Houellebecq, entre outros, mas nada comparável à influência daquelas estrelas. Mas, gênio, gênio mesmo, a França só reconheceu, nos últimos tempos, apenas Jean-Luc Godard, o atrevido cineasta de “Acossado” e o esplendoroso diretor da grande síntese “História(s) do cinema”. Mas, na verdade, Godard é suíço.

Olhando a política francesa, a gente percebe que ela foi se estiolando, Le Pen chegou para o segundo turno em 2002; o PCF não alcançou o coeficiente mínimo para o financiamento público de suas atividades – teve que alugar a sua sede projetada por Oscar Niemayer; o Partido Socialista ficou reduzido a um partido centrista, embora se dizendo de esquerda, mesmo quando Jospins estava no governo. As pedras que rolam pela estrada são pedras de uma decomposição da sociedade. Maio de 68 estava apenas na memória de alguns “gauchistas”. Contudo, a França tem uma memória sempre rebelde, sempre revolucionária, sempre pronta para a metamorfose. Vejam-se as diferenças. Nos Estados Unidos se diz: “It´s the law” (É a lei). Na França: “C`est mon droit” (É meu direito). Um país fala a realidade coletiva em terceira pessoa, e o outro em primeira, a universalidade no concreto da subjetividade.

Um pouco disso está neste movimento de Mélenchon. Jogou a política de esquerda contra a mesmice destruidora de Sarkozy e a resistência lenta quase parando de François Hollande. Mas é preciso ver bem este fenômeno. Como me escreve um amigo, o movimento de Mélenchon é fortemente de esquerda, mas inspirado na revolução francesa de 1789, que é uma revolução capitalista. Isto quer dizer que a sua voz pode incendiar os corações e as mentes dentro da ordem. E tem feito com sucesso: a Bastilha tinha uma multidão enorme. E Mélenchon está trabalhando com símbolo. Jacques, um amigo de Paris, que vota pelos socialistas, me disse que foi ao comício da Bastille. Ficou impressionado, mas não deixará de votar em Hollande. Contudo, não deixou de dizer que muita gente estava siderada por Mélenchon. A grande resistência a ele é que sua candidatura está dominada pelo PCF. E, como sabem, há sempre uma crítica à democracia praticada pelo “Partidão francês”.

De qualquer forma, ao contrário da eleição de 2002, nesta, a sociedade francesa se moveu mais para a esquerda forçando o cenário para Hollande. Uma militante de esquerda disse: “Eu sempre voto por um partido minoritário no primeiro turno. Mas neste ano, estou em dúvida, sou capaz de votar direto no Hollande.” E dado o sucesso de Mélenchon, ela acrescenta, com olhar esperto: “Talvez ele seja ministro do Hollande”.

DE ONDE SE PASSA DOS CASOS SINGULARES PARA O UNIVERSAL

Por que escrevo essas situações particulares? Primeiro, porque o capitalismo financeiro destruiu os resquícios de moralidade nas lideranças do sistema, pois transformou tudo em ativo financeiro. Inclusive a honra. Algo que Marx não escreveu em “O Capital”. Segundo, porque o capitalismo está mudando na direção de uma economia produtiva, com novas tecnologias e relativa subordinação das finanças. A gente já viu: localizam-se profundas resistências políticas deste lado, por exemplo, na Câmara de Deputados dos Estados Unidos. Terceiro, porque os emergentes estão avançando. E começam uma substituição de um modelo de acumulação financeira por um de acumulação produtiva (O Brasil está entre eles. E a questão ética começa a balançar em muitos níveis: Pallocci, Lupi, Orlando Silva, Demóstenes. As rasuras vão acabar? Não. Mas a corrupção vai se tornar outra.). Quarto, porque no eixo geoeconômico e geopolítico dos americanos – que já se desdobrou em dois: o eixo americano e o eixo chinês – temos a irrupção da resistência a essa destruição do bem estar social, que grassa na Grécia, em Portugal, na Espanha, etc., via a campanha presidencial francesa. Quinto, porque o fator antropológico-histórico da França, se conseguir ser ativado, vai reagir à sua decadência política, engolido que foi Sarkozy pela Frau Merkel. E esta linha de fuga socialista vai rebalancear a Europa. Embora Jacques diga que Mélenchon não é o seu candidato dos sonhos, Hollande também não é. Mas há um cheiro de resistência: Mélenchon propõe renda máxima, desmantelamento da OTAN, controle dos Bancos pelo Estado, direito dos trabalhadores de tomarem as fábricas que vão fechar, etc. O que disso vai ser assumido pelos socialistas se ganharem não se sabe, mas a atmosfera ideológica e política poderá entrar em ebulição na França e depois, como espalha chumbo, pelos ruas da Europa. Sexto, porque a China que não entrou nessa história, apesar de diminuir a expressão do seu PIB, está reconvertendo a sua economia e está jogando de mão contra todos, dos Estados Unidos ao Brasil, sem buscar ser inimigo de ninguém. Apenas os Estados Unidos estão cercando militarmente o espaço chinês. Ou seja, não há geoeconomia sem geopolítica.

QUANDO CHEGA A PERGUNTA FATAL

O que está dito aqui serve para provocar os leitores a discutirem como a crise objetiva do capitalismo financeiro leva a transformações subjetivas, criando o círculo da crise econômica encadeando facetas de uma crise política e o encaminhamento de soluções políticas avançando sobre definições econômicas. Nossa viagem começou na constatação da imensa crise ética e moral produzida pelas finanças com o seu admirável princípio: tudo é ativo financeiro. (Tudo quer dizer: mercadorias, moeda, serviços, princípios morais, ideias, etc.) Isto não quer dizer que todos se submetem a esse princípio. Mas, que ele está aí, está. Então, a pergunta fatal: qual é o caminho da mudança?

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