quarta-feira, fevereiro 22, 2012

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A ALMA DA ESCOLA
“UNIDOS DO OCIDENTE”

Enéas de Souza
23 02 2012


Dizem os entendidos em carnaval que a bateria é a alma de uma escola de samba. Pois a alma da escola “Unidos do Ocidente” é os Estados Unidos, que agora faz, com o violino da China, o ritmo da economia mundial. Atualmente, os Estados Unidos vivem um momento de relativa pausa. Um pouco como a Mangueira. A razão reside nas evoluções da política. Como todo mundo sabe, a decisão “para onde vai” o Estado americano depende da eleição de novembro. Obama esteve durante quase todo o seu mandato sob tremendo cerco. Ao receber o poder nas eleições de 2009, perdeu o passo e escorregou na sua estratégia, agindo timidamente contra os bancos. Do que tinha prometido, não alcançou medidas populares importantes, salvo na questão da saúde, e, ainda assim, de modo limitado. Veio depois, quase com humilhação, o seu grande revés. O samba – no caso dele, o jazz – atravessou na avenida e perdeu as eleições parlamentares do meio do seu mandato. A consequência inevitável: deixou de ter maioria na House, na Câmara de Deputados. Foi como se ele tivesse descido desastradamente uma pista de montanha russa. Ora, entortou o prumo, fracionou a imagem e desabou vertiginosamente no conceito popular.

E aí, como Dante, na primeira parte da Divina Comédia, Obama entrou no trajeto do Inferno. E seu governo parou, estancou e se dissipou numa tentativa de se manter nadando. Mas, sem boia nenhuma, um Dante sem Virgílio, com nado atrapalhado e tímido. Até que percebeu – felizmente, em 2011 – que precisava entrar em campanha para as eleições de 2012. Renovar a sua carteira de presidente. Já que o parlamento tinha interrompido qualquer veleidade de uma marcha progressista de seu governo. O laço que estrangulava Obama tinha a corda da política fiscal. De um lado, para gastar, estava limitado aos cortes do gasto público, negociados com os republicanos. E de outro, bloqueado pela amarra do teto da dívida, definido pelo parlamento.

Cercado completamente, Obama lançou-se ao ataque/contra-ataque eleitoral. E o ano de 2011 e o início deste 2012, o presidente ficou preparando a música para se manter no carnaval da Casa Branca. No seu discurso anual sobre o “estado da nação”, tentou mostrar êxito – pelo menos, parcial – em algumas políticas, sobretudo na tentativa de recambiar as empresas americanas que tinham ido para outros lugares, notoriamente para a China, na chamada deslocalização industrial. Fez-se, nessa ocasião, figura de campeão dos Estados Unidos, tentando reaver, na época da mundialização, as corporações para o espaço produtivo local. Por que isso era e é importante? Por causa do tombo do emprego. Buscava mostrar que, apesar dos adversários à sua política, a busca de reaver empregos estava dando certo. A prova: a taxa de desemprego estava caindo. Ela tinha saído dez e alguma coisa para menos de nove, chegando hoje na casa dos oito e quatro, oito e seis.

E Obama, como um bom advogado, tem procurado mostrar seus lances em prol da população desassistida na pós-crise financeira de 2007/2008. Lançou nessa direção uma tentativa de tratamento legal e ordenado para as dívidas imobiliárias e retomou, com um novo esforço, o gesto de taxar os ricos. O que se conclui de seus movimentos? Que Obama fica alimentando uma combinação de ações possíveis através de projetos quase impossíveis de serem aprovados e um discurso eleitoral para 2012 dizendo: olha, eu já estou propondo isso. Faz uma gerência política da paralisia causada pelos republicanos e da campanha antecipada das eleições, tecendo a reativação daquela chama que um dia o levou à presidência dos Estados Unidos.

Enquanto isso, os republicanos lutam nos canteiros da construção de seus carros alegóricos para ver qual deles vai ser candidato e que enredo e que projeto político ele vai levar à luta.

O que está em jogo, desde 2011, é a política que vai definir a nova economia.

VAI MUDAR O ESTILO DA BATERIA?

O grande problema da economia americana – e da economia capitalista – continua sendo como passar de uma economia velha para uma economia nova. Para tal, é preciso mudar de tecnologia, de política econômica; é preciso reorganizar as relações entre a economia financeira e a economia produtiva, é preciso definir as relações entre capital e trabalho, tanto nos Estados Unidos como no mundo. E é preciso introduzir a polêmica questão: como o Estado participará da dinâmica dessa passagem?

Quero examinar aqui um aspecto da temática da economia financeira e produtiva, mas um ponto extremamente agudo; se poderia dizer um rosto quase incógnito do problema.

Para que se chegue ao outro lado da margem da crise da economia é necessário impedir que a economia financeira se mantenha na mesma trajetória que transitou de 1979 até a crise da primeira década do século XXI. O que significa mudar em muitas facetas e inscrever regras e mecanismos para que ela não gire mais somente em torno de si mesma. E muito menos que ela atraia os resultados monetários das empresas produtivas com a finalidade de manter o circuito das finanças na rota delirante da especulação. Contudo, o que deve ser evitado continua insistindo até agora. Pois, leitor atento, dê-se conta, a corporação produtiva segue tendo ótimos lucros com o sucesso de suas aplicações financeiras. Em muitas delas é ele que é decisivo para a sobrevivência da corporação. Veja os seus balanços.

Mas tudo isso tem uma causa profunda, que está estaqueada na estrutura empresarial: o modelo da governança corporativa (corporate governance). Essa figura da organização empresarial cravou no corpo da corporação moderna um caráter financeiro inarredável. Ou seja, a produção é eminentemente financeira. Por quê? Porque esta governança corporativa estabelece e força que o principal de uma empresa produtiva não é a sua produção, nem a sua renovação tecnológica, nem a sua pauta de produtos inovadores. O principal dela é a valorização de suas ações – chamada em inglês de “Return on Equity” (ROE). O que significa dizer que toda corporação é gerida financeiramente. E gerida em todas as suas dimensões, pois cada um de seus centros de custo tem que dar lucro para proporcionar ao todo da empresa a rentabilidade desejada e o fundamental incremento do valor acionário. Ou seja, a corporação tem que elevar ao máximo a rentabilidade de suas ações. Daí que uma empresa produtiva está fundamentalmente preocupada com a sua rentabilidade global. O que faz da tesouraria, do departamento financeiro, a chave do seu êxito, através de um papel especulativo, inclusive jogando com suas próprias ações no mercado financeiro.

Assim, o principal não é o produto. Não é o investimento e o consumo das suas mercadorias. Não são as inovações tecnológicas do seu processo de produção, nem a diversificação do elenco de produtos da empresa. E, claro, muito menos a busca de pesquisa e de invenção de novas tecnologias. O que continua vigorando é a lucratividade acionária da empresa. Pouco importa de que modo. Nesse sentido, as finanças têm absoluta prioridade sobre a tecnologia. Isso provoca uma diminuição na velocidade das transformações da produção, exatamente por causa desse imperativo financeiro. Então, para que haja metamorfose do capitalismo, é preciso transformar a governança corporativa, retirar do corpo e das leis das empresas essa hegemonia do financeiro sobre o produtivo e suprimir a determinação estrutural da financeirização inexorável da corporação.

A questão é: como?

Por incrível que pareça, a primeira coisa é que haja consciência social e política desse enorme problema. Consciência social e política quer dizer a consciência dos investidores, dos diretores de empresas, das gerências, dos trabalhadores, da sociedade, dos políticos. Aqui está o verdadeiro nó da passagem de uma economia financeira para uma economia produtiva, com as finanças dando prioridade ao crédito à produção em relação ao crédito à especulação. A consciência levando a ação, a práxis.

Assim, é preciso que se tenha consciência do momento histórico para a transformação do capitalismo. A ideia fundamental não é apenas crescer. Na velha economia, agora o crescimento é efêmero, morre logo ali. É indispensável mudar o padrão de acumulação da economia. O que passa por mudar as relações entre as finanças e a produção, por mudar a tecnologia, por mudar as relações entre capital e trabalho, por mudar as relações entre capital, trabalho e Estado. Mas, muitos financistas, no entanto, acham que a economia tem que apenas voltar a crescer. Como sua visão passa somente por lucros extraordinários, lucros especulativos, o que interessa ao sistema financeiro são os bons velhos tempos. A produção reencontrar o seu crescimento e as empresas, financeirizadas, retornarem e ampliarem a sua rentabilidade acionária. O leitor não pode pensar que a economia e a sociedade vão se resolver com essa política e essa proposição das finanças. A economia desaba em seguida. Quais serão as ações da indústria e da agricultura e dos serviços e dos trabalhadores nesse quadro? Um dos pontos que vão lançar o futuro da sociedade contemporânea está na solução do impasse atual da governança corporativa.

Pode-se ver, então, o panorama da luta econômica e política. A questão decisiva, que está no horizonte das economias do Ocidente, sobretudo da economia americana é: como desfinancerizar a produção? Como abandonar ou transformar a governança corporativa? E a pergunta subsequente é: estão os Estados Unidos preparados e se empenharão para alterar essa estrutura? E a Europa? E o resto do mundo? Tudo está no bojo das disputas, das convergências e das divergências das classes sociais. Reforçando que o principal da resposta esteja nos Estados Unidos, cabe a indagação carnavalesca do momento: vai mudar o estilo da bateria da escola “Unidos do Ocidente”?

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