quinta-feira, dezembro 29, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL

A REVERSÃO
DO ESTADO
PRÓ-FINANÇAS.

Enéas de Souza
29/12/2011


Tenho falado que é o Estado que vai intervir e liderar a transformação da atual sociedade capitalista, de financeira-produtiva para produtiva-financeira. Mas, amiga e leitora, a arquiteta Glenda, traz aos meus comentários da semana passada, “Por quem estouram os foguetes neste Natal”, uma dupla questão. Nas suas palavras: “Concordo com tudo, só que me ficam algumas dúvidas, a primeira: será que ainda existe ‘Estado’? Aquele que cuidava da ‘res pública’, aquele que supostamente existiria para promover o ‘bem público’? Acho que está (o Estado) reduzido a um fantoche, um brinquedo nas mãos do ‘mercado’ e dos bancos! Em segundo lugar, tem uma questão crucial que é este ‘embate’ entre Ocidente e Oriente: conhecendo-se as diferenças cruciais entre as mentes ocidentais (que tiveram sua inspiração primordial – num exercício de síntese muito redutor, é verdade – no pensamento, ciência e políticas gregas e, fundamentalmente no Direito romano) e as mentes orientais, sempre ferrenhamente autoritárias e ditatoriais, pergunto: qual o papel da China, da Índia, Irã, Iraque, etc., neste quadro apocalíptico?”

Glenda tem toda a razão sobre o Estado atual. E por quê? Em primeiro lugar, porque hoje o citado personagem é resultado de uma construção e de uma institucionalização política que dá ênfase e saliência ao projeto das finanças. Não se pode esquecer que institucionalização vem de “instituire”, que quer dizer “o que permite viver”. É o que permite viver a supremacia do capital e das finanças. E nesse embalo, o Estado deixa de lado tanto o bem comum, quanto a dimensão pública da sociedade. E ele se transforma – pela sua atuação, pela prevalência de mecanismos onde a taxa de juros é o principal definidor de impostos, tributos, taxas, multas, descontos, desonerações e incentivos, e mesmo de políticas públicas, etc. – no que chamo de Estado financeiro.

Podemos perguntar: em que consistiu fundamentalmente este projeto neoliberal das finanças para o Estado?

O projeto das finanças foi uma lenta e longa noite que visou a destruição do Estado nacional (1979-2007/8). Deu-se, então, como a repartição do átomo. Houve uma ruptura na unidade e no entrelaçamento de instituições e órgãos estatais que comandavam a política, a estratégia e o projeto nacional. Tal cirurgia esquartejadora, infindo espetáculo macabro, envolveu a separação e a anulação e, em muitos momentos, a cooptação da direção do Estado. Fantasma aterrador. Duas de suas grandes forças institucionais – o Banco Central e a Fazenda – se tornaram, no mais das vezes, órgãos auxiliares das Finanças. Só que, dentro do Estado, eram forças dominantes. E para completar a destruição da unidade, um dos elementos decisivos da operação do Sistema Financeiro, foi tornar ineficiente ou eliminar completamente o Ministério de Planejamento. Obviamente, essa bala mortal, transformou o Estado numa ‘stultifera navis’, um Titanic navegando sem rumo. Culminou essa operação tríplice por liquidar uma política econômica e social global, ficando o Estado apenas a conduzir uma política econômica reduzida, dedicada à expansão voluptuosa do sistema financeiro.

Ou seja, armou uma política subalterna de Estado com um composto de política monetária, cambial, financeira e fiscal, com o objetivo nobre de garantir a estabilidade da economia, no entanto, para que as instituições financeiras surfassem nas ondas da especulação. E o resto, se não foi silêncio como diria Hamlet, foi a metamorfose de zonas da política pública a expansão do capital inversor nas fronteiras internas do próprio Estado: previdência, saúde, educação e cultura. Com isso, o processo de socialização foi abandonado até mesmo como busca de longo prazo. E como um véu enganador, o futuro desapareceu do horizonte das sociedades. Surgiu, então, a grande festa do cassino e do carrossel financeiro, que atirava sobras para o setor produtivo e migalhas para a população. Houve momentos exitosos em que as pessoas se sentiram felizes. Só que o desastre americano, em todos os sentidos, revelou que, no outro lado da lua, o rei exibia seu corpo nu. Pois só existem perspectivas duradouras para toda a sociedade, se e somente se o longo prazo organiza o curto.

Mas qual foi a curva que levou as finanças ao seu trajeto declinante? Foi a carta mais audaciosa, a mais alta, como uma árvore secular: a desregulamentação progressiva e doida do mercado financeiro. Foi aí que, como um cavalo selvagem, a especulação tornou-se uma correnteza indomável, levando de arrasto inúmeros capitais e ativos financeiros. Ela – a desregulamentação – está arruinando todos os Estados dos países desenvolvidos, dos Estados Unidos à França. Isto foi o resultado de uma combinação de ações do executivo e de congressos, permitindo, no caso mais exemplar – os Estados Unidos – que as alavancagens (cada dólar se transformando, sem controle, em trinta, quarenta, cinquenta outros) provocassem as extrapolações da securitização e da hipotecarização. E vejam que nesse processo ocorreu também uma aliança dentro do Estado contra o Estado, a partir de poderosas forças que atravessaram os congressos nacionais e, muitas vezes, o próprio judiciário.

Já se pode ver que o projeto neoliberal sempre procurou afastar o Estado da economia, liquidar funções fundamentais dele como a mais vital, a do planejamento de curto e longo prazo. Para ver o descolamento do Estado com a população, a questão do emprego foi relegada ao setor privado, a uma política microeconômica. Veja-se a perfídia: o Estado, sobretudo na crise, tem que sustentar o nível do emprego da sociedade, o contrário do que se faz hoje, quando é forçado a cortar na própria carne e começa pela exclusão de funcionários, pela liquidação da previdência e das aposentadorias e a supressão dos programas sociais, etc., como em Portugal e na Grécia.

Mas, Glenda, veja só a perfídia desse neoliberalismo. Cortaram o Estado em pedaços para melhor repartir o domínio do Estado para o capital, com hegemonia do financeiro, como já falamos acima. Mas, no entanto, estamos no coração do artifício e da cilada. Aparentemente, a fragmentação do Estado nos dava a impressão de que ele estava sem força. E isso era verdade. Mas somente dentro de uma linha: estava sem força contra o capital e contra as finanças, principalmente. Mas contra o cidadão, esta força era cada vez mais sem limites. Porque Estado tem o monopólio da força, ele é coerção, e as finanças sempre usaram a coerção do Estado contra o cidadão, e não contra o Estado, porque, na verdade, quem o ocupava era a própria Finanças. A burocracia que poderia visar, pelas suas funções, o bem comum, tramava, por compadrio, com a força econômica dominante, a capação da res pública. Chesnais, François Chesnais, disse muito bem: o que temos é a ditadura do capital financeiro. Por isso, o público desabou, mas o poder do Estado, não. E as finanças sempre souberam usá-lo como nunca, apoiado no domínio financeiro sobre o político em geral. No entanto, está havendo, inclusive no Brasil, um princípio de reversão do Estado, onde a sua reunificação está num movimento que vai se acelerar. Múltiplas pressões encaminham o ente estatal a liderar a construção de um novo padrão de acumulação. Chegar até lá e reconstruir é um longo processo de desmontagem das instituições liberais e a construção de novas. Não há como negar que a China, dando saltos avassaladores, tem mostrado o êxito da unidade do Estado no combate à crise atual. A tendência parece vigorosa. É daí que nasce o mar da reversão.



(PS. Quanto à segunda questão, não sei responder com segurança. Mas, o que posso dizer é que ela tem que ser pensada não num confronto entre Ocidente e Oriente, mas num confronto de fundos antropológicos, sociológicos e históricos das nações na dinâmica do capital, no seu processo de reprodução. Por isso, o Estado chinês – por mais que tenha as influências históricas das suas dinastias, da Revolução comunista de Mao, da sua cultura histórica milenar – vai sendo direcionado pelo processo de valorização do capital. Claro, o Estado do capital nos Estados Unidos é diferente do Estado do capital da China. As tradições das nações dão a cor da sua experiência no desenvolvimento do capitalismo. Mas, o primeiro, enquanto sobreviver, será o capitalismo. E isso faz parte da luta geopolítica das nações. O comunismo foi o último movimento que se opôs, e foi derrotado, diga-se, pelas suas próprias contradições. No confronto do Ocidente e do Oriente, o importante é saber, em termos de economia, se existe a possibilidade de construção de um outro sistema que possa se opor ao citado capitalismo. Do contrário, será apenas o modificar da forma externa de desenvolvimento do capital, porque o capital é o seu próprio construtor, já que é ele que revoluciona a si mesmo. E a sua destruição terá que ser um processo revolucionário de base política, econômica, social e ideológica – que, no momento, está fora de cogitação e de construção).

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