quinta-feira, setembro 22, 2011

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
21 de setembro de 2011
Coluna das quintas

DILMA. A ONU
E O CAPITAL FINANCEIRO
Por Enéas de Souza



1) Dilma subiu para a tribuna da Assembléia Geral da ONU na dinâmica de algumas modificações históricas da sociedade contemporânea. Do ponto de vista social, está escudada na ascensão da mulher no século XX; do ponto de vista econômico, ela fala da crise com a credencial de quem vem de um país que tem o crescimento dos emergentes; do ponto de vista político, ela se manifesta no momento de uma crise de governança e de coordenação política na mundialização, propondo democracia, justiça, direitos humanos e liberdade. E como estadista – essa foi a sua estréia – ela diz nitidamente: não faltam recursos financeiros, o que faltam são recursos políticos e até, às vezes, clareza de idéias. Na verdade, sua proposta tem como objetivo uma dupla flor: a coesão política e a coordenação macroeconômica.


2) Quando Dilma olha o panorama do presente, ela sente que a falta de coordenação política está girando em torno da flutuação que passam os Estados Unidos. Não é ela quem diz, sou eu. Mas não tenho dúvidas que ela percebe, senão o tombo americano, ao menos, o deslocamento que o país sofreu com a crise econômica e com o cerco e a prisão de Obama pelas finanças e pelo Tea Party. Isto quer dizer que há uma pane na liderança do mais poderoso país do mundo. E é por isso que Dilma sugere que haja uma intensificação dos esforços de coordenação entre as nações integrantes da ONU e as demais instituições multilaterais, tais como o G-20, o FMI, o Banco Mundial, etc., para superar, pelo menos até as eleições de 2012, este vácuo de poder. Conclama que o rumo da solução política se acorde com uma visão econômica, com rapidez e através de soluções coletivas e imediatas.


3) Dilma não tem dúvidas que a política tem que conduzir a uma ação econômica geral, de tal modo e com tal vigor que os países desenvolvam ajustes e estímulos fiscais, duas operações que se encaminham no sentido da recuperação econômica e do processo de desenvolvimento. O resultado efetivo dessas operações carrega uma estratégia vigorosa, que traz, ao cenário da economia, um providencial aumento da demanda e um retorno do crescimento. Pois o desafio está visível, está candente, abusivamente doloroso, são 205 milhões de desempregados no mundo. Portanto, um Brasil marginalizado na expectativa de amparo estatal e de uma política econômica que dê soluções. Dilma sabe bem quem é o inimigo: é o sistema financeiro, desregulado, solto, e que se aproveita de políticas monetárias excessivamente expansionistas, caso dos Estados Unidos, para navegar no mar da especulação. Logo, o remédio é claro: regulamentar o setor. E com uma manobra insinuante, cujo toque se projeta na reforma das instituições financeiras multilaterais. Naturalmente, a idéia de regrar o sistema se acompanha de uma segunda, a desvinculação do poder das finanças dos seus instrumentos de coerção, que são esses organismos internacionais. Daí fica claro a prioridade da economia mundial para Dilma: a crise da dívida soberana de alguns países e a reversão do presente quadro recessivo.


4) Obviamente, as finanças não devem estar de acordo. Pois elas trabalham num padrão de acumulação que, embora esteja se desmanchando, permite alucinados vôos especulativos. O que instabiliza mais ainda, como diria o Minsky, uma economia já instável. E elas radicalizam um processo coercitivo de redução da política econômica de vários Estados. Ficam apenas com as políticas monetária, cambial, financeira e fiscal, que são as que lhe interessam. Claro, elas recusarão a proposta da Dilma. Só que a carta que a presidente está pondo na mesa de jogo não é uma carta apenas econômica, tem conteúdo político. No vácuo da desintegração do eixo unipolar dos Estados Unidos, ela está insistindo numa multipolaridade coletiva. E essa pressão política incrementada pelo Brasil – colocando um fogo da urgência, já que a crise não espera – se concretiza na idéia de ajuda dos emergentes, dos BRICS, em verdade.


5) E nisso – aí, é uma opinião minha – não vai se estabelecer uma multipolaridade, mas sim uma bipolaridade, USA/China, que a Dilma nem toca. E em torno dessa, uma pluralidade de nações ficará oscilando entre essas duas. Nesse sentido, jogando a idéia de universalidade da contribuição de todos os países e da transformação do cenário e da organização política de instituições multilaterais gerida pelas finanças e pelos Estados Unidos, o que Dilma está propondo é a metamorfose do quadro geral. Com isso, em primeiro lugar, deseja avançar pelos trilhos da atual inércia e paralisia americana. (Pode-se incluir, neste balaio, o imbróglio político europeu). Em segundo lugar, tenta retomar a questão mundial pelo lado dos Estados, desnucando o espaço privado do jogo das finanças. Em terceiro lugar, e por conseqüência, busca reforçar a política nas definições das soluções econômicas, ou seja, os ajustes e os estímulos fiscais consolidarão os Estados no enquadramento das finanças. E, em quarto lugar, projeta um pontapé inicial por meio da boa situação dos emergentes. “Podemos e queremos”. Só que é preciso que a China compreenda que a teimosia excessiva do câmbio fixo pode causar danos e problemas ao itinerário da solução da crise. Então, a gente consegue entender porque contra a guerra cambial e o protecionismo, Dilma queira o câmbio flutuante.


6) Todavia, a Dilma não deixa de perceber que a crise tem força, que vem, pelo menos, para descarregar o desemprego sobre os trabalhadores e a dívida sobre os Estados. E claro, ameaça, como um vento danado, derrubar os alicerces dos países. Por essa razão, Dilma propõe uma política que misture cortes e controle dos gastos públicos com superávits gigantescos; dispêndios estatais com gastos privados; investimento e consumo com uma política econômica de fortalecimento do mercado interno. E Dilma não está apenas procurando resistir à crise; visa também ir adiante, e distribuir renda e fazer inovações tecnológicas. Trata-se de uma estratégia de se preparar para o surgimento de um novo padrão de acumulação. O que vejo é a busca de uma nova articulação. Estado, capitais, trabalhadores e novas tecnologias. E com isso, aumentar o que Keynes chamava da eficiência marginal do capital, ou seja, fazer subir a lucratividade esperada dos novos investimentos.


7) E, diante da paralisia americana, Dilma sobe à tribuna para reivindicar, igualmente, uma mudança política na ONU e no coração poderoso dessa instituição, o Conselho de Segurança. O mundo é outro e o Conselho, no entanto, é ainda um Conselho do imediato pós-guerra, um Conselho vigente na Guerra Fria, um Conselho que não se alterou. Dilma, no fundo, propõe e reitera, como outras nações, a sua reforma. No curso desse itinerário, inscreve uma proposição de política internacional: guiar-se pelo desenvolvimento, pela paz e pela segurança. Isso porque, alerta, está na hora de encarar no olho esta crise econômica, uma inflamação que pode transformar-se numa labareda e num incêndio demolidor. Se tal ocorrer, terríveis desabamentos políticos e sociais afetarão intensamente homens e mulheres e múltiplos países. Não se pode evitar: todos têm o direito de participar das soluções. Trata-se de uma constatação e de um chamamento, inclusive em termos de valores. E o Brasil postula, como valores decisivos, os da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade.


8) Está muito claro, resumindo, que a visão da presidente Dilma passa pela decomposição momentânea dos Estados Unidos e da Europa; pelo crescimento dos BRICs; pela necessidade de reposicionar as finanças na organização da economia; pela alteração da postura dos Estados diante do sistema financeiro; pela reformulação da dependência dos Estados em relação às finanças, sobretudo no ponto principal: a dívida; pela reformulação fiscal do Estado, equacionando uma política de recuperação da demanda e do crescimento; e pela reorganização da ONU e das instituições para-estatais. Contudo, a proposta mais vigorosa está no escapamento do Estado do setor financeiro para permitir que haja uma nova ordem da economia mundial, organizada por uma articulação de países ricos com países pobres, através de políticas coordenadas de estímulos, com a finalidade de diminuir as desigualdades. Claro que, aqui, vem a famosa pergunta do Garrincha: já combinaram com o adversário? Só que, em política, o jogo se faz pelo embate de idéias e de forças, E o que Dilma está construindo é a colocação de um outro e diferente ângulo para desenhar o conjunto da combinação política e economia, visando traçar uma linha para uma outra época.


(O discurso da Dilma foi trabalhado numa dimensão que conteve uma pluralidade de pontos. Uns dialogando com outros, esses fazendo distinção daqueles, e muitos contrastando com diversos, e assim por diante. A clareza do texto não ocultou a múltipla tonalidade da emoção. Contudo, o meu comentário fixou-se nos contornos da crise, demorando-se nas chamas e na luminosidade que atravessaram, direta ou indiretamente, os temas da ONU e do capital financeiro).

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