quinta-feira, março 10, 2011

CRISE ECONÔMICA MUNDIAL
10 de março de 2011
Coluna das quintas




O CARNAVAL SINISTRO
DAS FINANÇAS
Por Enéas de Souza


É a comédia, é a vigarice aparecendo desnuda, é a mostração de um grupo social cuja natureza é a traição, a burla, o duplo jogo. Traição dos seus clientes, traição da realidade, conjugando poder e dinheiro, triunfo econômico e domesticação da política. É aí que a gente vê o nu frontal das finanças. Não há como se enganar: olhem o filme: “Trabalho interno” (Inside Job) de Charles Ferguson. Ele nos mostra – e perdoem, os leitores, nossa falsa modéstia, o que o André e eu sempre mostramos – os falsários do neoliberalismo. Nós nunca estivemos sós, tínhamos posições próprias, mas dialogávamos com inúmeros autores: Chesnais, Roubini, Aglietta, Orléan, Satiyajit Das, Krugman, etc. e com vários blogs como Naked Capitalism, Zero Hedge, La pompe à la phynance e até mesmo o incandescente Leap, etc. etc. Apesar disso, éramos uma gotinha no meio da garrafa espumante e cascateira das finanças. Pois passando pela gigantesca fraude que estourou em 2007, ainda existem pessoas que acham que foi o Governo que motivou a crise, que os financistas eram honestos, mas tiveram opções infelizes e se equivocaram. Enfim, que tudo não passou da “verdade do mercado”. E que é preciso recomeçar um novo período das finanças, etc., etc.

Pois qualquer que seja a sua visão, assista “Trabalho Interno” (Inside Job), que está passando em todo o Brasil, talvez em todo o mundo, pois ganhou o Oscar de documentário. Lá está estampado todo o sexo da falcatrua financeira. Lá está desmontada toda a trama do enredo da desregulamentação econômica, como fizemos aqui durante alguns anos. Não estou tratando neste artigo da qualidade estética do filme, trato dos temas contidos nele. E você pode ver nesta película o delituoso da economia que o cinema nos traz com uma pintura antropológica inédita. São os depoimentos de personalidades que combinam notavelmente com os escombros desse neoliberalismo. As falas emergem das tomadas de personagens reais em grandes planos, onde as faces, as palavras, as idéias, os silêncios, as justificativas atrapalhadas e canhestras, a incapacidade muitas vezes de encontrar uma mentira, etc., exibem a natureza podre, cínica e trapaceira que construiu a imensa pilantragem das finanças nos últimos tempos.

Sim, é preciso ver que o neoliberalismo terminou, mas o sistema ainda não chegou ao fim. Principalmente porque ele retorna. E retorna com fome redobrada e quase sem memória, propondo o mesmo logro de sempre. Claro, a dinâmica econômica desse tipo de economia não pode mais funcionar como antes. Os próprios capitalistas não acreditam mais que a fantasia e a mentira funcionem nem entre eles e, muito menos, com grande parte dos aplicadores. Mas sempre há incautos e sempre oportunidades para que a especulação funcione. A dinâmica do capital está como uma bicicleta cuja roda entortou; ainda anda, mas tem que ser corrigida a cada momento. Contudo o poder político das finanças ainda não foi derrotado. Porque embora se possa ver um ou outro senador desmontando as máscaras da trampa, como exibe o filme, o Senado e a política, submetidos aos lobbies financeiros, ainda impedem possíveis reformas e novas leis, detendo uma esperada regulamentação firme. Até Soros defende essa posição. O importante é ver, no entanto, que a saída de Bush não impediu que botassem Obama na roda. É aquilo que escrevi há tempos atrás. O governo deste estava totalmente cercado. E o filme mostra o que dizíamos: o secretário do Tesouro, Geithner; o presidente do National Economic Council da Presidência da República, Lawrence Summers, etc., etc., todos tinham participado do fracassado cassino e estavam voltando ao governo. Ou seja, Obama, após a eleição, entrou no círculo de ferro do capital financeiro. Lembro de que fiz uma brincadeira. Disse que logo depois da posse do presidente americano e, na manhã seguinte, ao levantar, ele poderia se dar conta de que Michelle, ela também, poderia ser das finanças. Aí estaria perdido. Lembram?

Pois, recentemente também escrevi – sobretudo quando se pode perceber um rearranjo no domínio interno americano das finanças-indústria bélica-energia – como o neoliberalismo abalado não se dá por vencido. Vai como Nero incendiar o mundo. E agora ele pegou uma boa causa: “Delenda Kadafi!” Ou, em linguagem de computador: “Deleta Kadafi!”. Repetindo enfaticamente: é esse movimento especulativo – marca profunda da natureza do sistema financeiro – que está atravessando e assustando o mundo com a especulação do petróleo e das matérias primas e dos alimentos. E que, ao mesmo tempo, retorna à cena para dizer, com a maior cara de pau do mundo, que precisamos acabar com a violência na Líbia. Por que não se parou a violência contra o Iraque? Paul Wolfowitz, na sua perfídia de ocasião, disse outro dia numa entrevista que o mundo ainda vai reconhecer o esforço americano de propor a democracia no Iraque. (Por favor, amigos, não atirem pedras e tomates e outras coisas piores sobre o pobre do Paul, um dos arquitetos da ação americana sobre os iraquianos.).

Falo tudo isso porque vocês podem ver no filme de Charles Ferguson, a cores, as caras espetaculares que fizeram os financistas, os políticos, os administradores públicos e privados, os representantes das agências de ratings, o defensor de uma entidade de lobistas e, principalmente, economistas (ah, nossa categoria!) expondo e exibindo os seus verdadeiros rostos, numa retórica de falsidade, de hipocrisia, de vigarice e de embuste. Quando conversamos, por celular, outro dia, André e eu, ele me disse: “só faltou ao filme dizer que a recuperação das finanças foi paga pelo Estado”. E disse eu: pelos governos de Bush e de Obama. Mas acrescentou André com ênfase: “o filme devia ter dito para a platéia: por vocês mesmos!”. Pois foram, no fundo, aqueles que pagaram os famosos “bailouts”.

E sobra uma questão muito forte: por que os economistas, salvo poucos, permitiram que a “ciência econômica” se tornasse uma lógica do trambique? Por que abandonaram a economia como um pensamento crítico e examinador das questões político-econômicas? Por que esqueceram de descrever, ao menos, a realidade como ela se apresentava, sem tomar a atitude laudatória? E, finalmente, a pergunta demolidora: como é que se poderia chamar esse pacto entre certa economia e as finanças?

Assim, tenhamos claro, hoje, que a guerra no Norte da África e no Oriente Médio não é apenas uma guerra política, é também uma profunda guerra econômica, na qual o neoliberalismo armado tenta recuperar, por novas propostas “humanitárias”, a sua liderança no mundo. Que a situação nos países árabes e no Oriente Médio deve mudar, não há dúvida nenhuma. Todavia, temos que considerar no caminho das metamorfoses e das revoluções ali inscritas, que, se o neoliberalismo terminou como sociedade viva, não acabou como domínio e propaganda política. Ele ainda não está morto, ataca, ainda neste momento, com uma proposta econômica e política fantasma e rapineira, em diversos pontos do mundo, tanto na geoeconomia como na geopolítica. “Speculation, that´s the name of the game” Se duvidarem – e a dúvida é uma herança da civilização – vejam o filme “Trabalho Interno”. E se não duvidarem, também. Ele nos mostra o carnaval sinistro que construíram e que querem que continue.



PS – Entro em férias por um mês. Até abril.

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