quinta-feira, junho 03, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
03 de maio de 2010
Coluna das quintas

A FRATURA
DA ECONOMIA
MUNDIAL
Por Enéas de Souza




RESPONDA RÁPIDO: DECOMPOSIÇÃO DA ECONOMIA É PÓS-CRISE?

Para avançar na compreensão da situação atual da economia globalizada vamos fazer algumas perguntas. Primeira pergunta: é possível restaurar uma economia que está fraturada em duas, fraturada entre o enlace americano em profunda desorganização (Estados Unidos, Inglaterra e Europa) e o enlace chinês em vasta reformulação (China, Ásia, África e parte latino-americana)? Ou seja, a economia puxada pelos americanos – de construção global – que envolveu o mundo todo, inclusive a China, que se desenvolveu sob os templos dos déficits gêmeos dos Estados Unidos (déficit comercial e déficit fiscal), acabou numa desordem geoeconômica. Decomposição de proporções ainda não delimitadas, mas com um fenômeno importante: esta economia globalizada se rompeu e vai ter que ser reparada. É preciso, sem medo de errar, supor a idéia de que nenhuma economia retorna ao que foi. Portanto, o agradável pensamento de certos economistas, de certos políticos, de certos jornalistas sobre a recuperação e a restauração da atual economia não pode ser um pensamento sem objeto? Não estão nesta categoria também aqueles economistas que falam da economia da pós-crise?

A FRAQUEZA ECONÔMICA ESTÁ NA POLÍTICA TAMBÉM

Uma economia que se parte contem no seu casulo a possibilidade da construção de uma nova configuração econômica. Só que precisa desmanchar, pelo menos até certo ponto, a que estava aí. E este desmanche, porque social, tem resistência por todos os lados. E tudo fica muito difícil de se solucionar pela fraqueza dos Estados. Fraqueza diante do descozimento da economia. Dando nomes: da crise do sistema financeiro, da crise produtiva e do desemprego em larga fisionomia. A fraqueza americana se origina na incapacidade do seu Estado – na negociação do Executivo com o Legislativo – em aprovar uma nova arquitetura financeira com novas regras. E na fraqueza keynesiana do financiamento dos novos setores tecnológicos para recuperar o dinamismo produtivo. Não há como negar: a crise trouxe o questionamento do Estado no Ocidente. Pois o que se vê na Europa é um desdobramento em ramos específicos da quebra da árvore que fez florescer também os frutos europeus. Postergando a questão, as finanças e os conservadores de todos os lugares desta cadeia querem reter a forma que já se foi. Tudo isso pode nos levar ao que Tenessee Williams chamaria de “Um demorado adeus”.

O QUE FAZ A DIFERENÇA DA CHINA

Corta a cena e temos um novo plano: a China. O personagem é outro, tem outra realidade. Ela é uma economia emergente. Uma economia que se organiza com dinamismos próprios acentuados, O que não quer dizer que não se alteia também com estímulos do exterior. Foi o deslocamento de empresas americanas, em busca de baixa de custo, que deu um grande impulso ao “drive exportador” chinês. Nessa lufada de vento transferiu tecnologias administrativas, financeiras e produtivas para a economia receptora. Todavia, há um ponto que mostra uma substancial diferença. O Estado chinês. Um Estado que não se colocou a serviço das finanças e nem mesmo da produção pura e simples. Engendrou outra coisa. A China tinha um Estado que assumiu o processo de planejamento, de liderança e de investimento na economia. E desenvolveu os mecanismos de mercados sempre com o apoio, a vigilância e a regulação do Estado.

O AVESSO DO ESTADO AMERICANO ATUAL

Desta forma, a pergunta seguinte tem cor. Trazendo o fato de que a economia chinesa tem um Estado intervencionista, produtivista, um Estado que planeja as modificações das atividades econômicas, será que ele tem capacidade para reordenar e liderar, de puxar uma nova ordem mundial, além de tratar da reformulação de suas estruturas? Esta pergunta tem uma resposta evidente: não. Todavia, o que ela coloca às economias americana e européia é um contundente desafio: como uma economia pode resolver sua crise sem o papel do Estado? E diretamente: como lutar contra a expansão chinesa com um Estado frágil diante das forças econômicas internas em Estado de inércia ativa? Como o Estado americano pode lutar contra o bate pé das finanças? Como o Estado americano pode colocar vigorosos recursos para uma modificação estrutural do setor energético? Como pode o Estado americano dispor de financiamento para a solução dos problemas ambientais e constituir, de um modo capitalista, novas indústrias no setor? Como o Estado americano poderá dirigir à base do crédito destinado à especulação para o desenvolvimento dinâmico destinado à liderança da produção das novas tecnologias de informação e comunicação?

O CRITÉRIO DA MUDANÇA

O que queríamos fazer notar neste texto é que temos, de um lado, a decomposição de uma economia globalizada em torno dos Estados Unidos. Mas, uma economia que, neste desmanchar, destruiu a solidez do enlace que existia na globalização. Dito de maneira diferente, do jeito de Camões com “uma tuba canora e belicosa”: a economia mundializada está sim, está partida estrutural e dinamicamente. A economia que existiu não volta mais, não adianta dizer que há crescimento aqui e ali. Isto melhora, mas não altera quase nada. Por quê? A resposta está na pergunta que ladra: houve mudança estrutural na atual economia do mundo? Na China até que se fabricam transformações. Mas, nos Estados Unidos – e principalmente na Europa – a estrutura liberal que está depauperada, sem ânimo, não encontra capacidade para reformar os seus encantos, ela tem uma paralisia interna brutal. As nações e os Estados são prisioneiros das finanças; e as finanças não se resolvem e se deslancham; e o crédito não flui e não irriga a produção; e a produção não se transforma nem se aventura tecnologicamente. Pode uma economia desta ordem estar em retomada econômica? Em pós-crise?

A CHINA TEM FORÇA PARA PUXAR O MUNDO?

Do outro canto do planeta, a China encadeia uma transformação da economia. Deixou de lado o caráter exportador, volta-se para a sua intimidade, reforma as áreas produtivas para renovar os setores. Naturalmente, isto não é feito sem choques, sem conflitos sociais, sem pressões inflacionárias. Mas, como dizem os franceses: “on bouge”. A coisa anda. E nessa nova dinâmica, recompõe relações com regiões, com países, faz uma nova sintonia com Ásia, com a Índia, com o Brasil, etc. Ou seja, a China existe como dinamismo. Mas, a pergunta devorante é a seguinte: está ela em condições de substituir – dinâmica, tecnológica e financeiramente – a economia americana? É a economia chinesa uma economia capaz de soldar e puxar a economia americana? É a economia chinesa uma economia líder das transformações energéticas? Tem ela metamorfoses tecnológicas de ponta nas novas tecnologias de comunicação e informação, na nanotecnologia, na biotecnologia, nas tecnologias médicas, na bioeletrônica? É o Estado chinês capaz, por sua fortaleza, por sua dimensão, por sua influência mundial, de construir uma moeda com suficiente força para rivalizar ou substituir o dólar?

AS QUESTÕES JOGADAS SOBRE A ECONOMIA

Infelizmente, se as respostas forem não, a estrada ainda vai continuar longa. Ainda teremos o tema de Eugene O´Neill, “Uma longa viagem dentro da noite”. E as questões são essas, jogadas, lembrando Drummond, como as coisas que o mar lança a praia:
1) Como organizar no Ocidente um novo Estado que possa dominar as finanças e orientar, via planejamento, a nova produção? O planejamento pode ser reconstruído?
2) Como quebrar a hegemonia das finanças, inclusive o seu domínio sobre o Estado? Como transformar o Estado financeiro? Que Estado estará por vir?
3) Que estrutura de organização teremos nas empresas ocidentais, dado o fato de que a “corporate governance” é uma forma de financeirização das empresas? Existem novas formas de organizações empresariais à vista?
4) É possível mudar a economia globalizada, conservando as características da economia financeira apenas alterando o enlace com a China? Ou seja, diminuindo a liderança americana e proporcionando um maior fator de dinamismo na economia chinesa?
5) A questão fundamental passa por diversas sub-questões urgentes. Da pergunta principal, de como será organizada a combinação da nova estrutura da economia globalizada, podem emergir dúvidas sobre qual a liderança – ou até mesmo a hegemonia – que vai conduzir o processo econômico? É possível ainda pensar que a transformação da economia produtiva, como as novas tecnologias, a infra-estrutura energética, as condições ambientais, virão da recomposição da estrutura financeira neo-liberal?
6) Poderão os americanos reformar a sua economia e a sua política externa, baseada na guerra, na direção de uma nova economia mundializada que componha, sem conflitos, com as metamorfoses da China? Os recentes encontros entre americanos e chineses encaminharam as questões nesta trajetória?
7) É possível a economia americana dominar as finanças e encaixar uma economia de tecnologia avançada, com um objetivo de se tornarem novamente exportadores em face de uma China se estruturando economicamente pelo interior e se tornando importadora? Quais as conexões possíveis pondo na jogada as demais economias como a Europa, a Rússia, o Brasil, a Índia, etc.

8) Enfim, as perguntas poderão se desdobrar continuadamente, como um rio caudaloso, fertilizando os questionamentos. Crescem as tensões, crescem as deteriorações, crescem as questões sociais. Pergunta igualmente decisiva: não estarão retornando os grandes conflitos sociais de outras épocas, vestidos de novas roupagens e novos combates e novos ativismos? Ou seja, os conflitos ideológicos, políticos, econômicos entre capital e trabalho poderão emergir frontalmente em toda parte? Ou serão conflitos localizados, por exemplo, como na Europa? Não haverá uma direitização do mundo, por outra parte, como mostram as forças conservadoras que estão presentes nos Estados Unidos, que venceram as eleições na Inglaterra, que se manifestam sem reservas na Alemanha, etc.?

ATENÇÃO PARA AS DORES DA MUDANÇA

De qualquer forma, o que parece claro: vamos entrar numa nova fase histórica. E a passagem de uma forma para outra, do neoliberalismo financeiro e de guerra para uma nova modalidade, ainda em profunda e subterrânea gestação, não será feita sem dores. Por enquanto, o que temos é muito embaralhamento das questões e das forças sociais. Veja o leitor clássico que quando a peste invadia as cenas na épica ou na tragédia grega, ela anunciava tempos difíceis, tempos de profundas alterações. Nos anos trinta, a peste da Grande Depressão apontou para a 2ª Grande Guerra Mundial. Agora, a peste que assola a economia globalizada, com a ruptura de sua unidade, com a presença manca da financeirização, com a incapacidade de avanço das novas tecnologias, com a presença de novos países no cenário – incluindo o Brasil – com a retomada, ao menos, na Europa de revoltas populares, pode-se pensar que a peste está presente? Para onde aponta? Pode-se descobrir, como indica o título daquele livro de administração, “O lado bom da crise”? Como nos romances, como nos filmes inquietantes, a gente sempre se pergunta: como se desdobrarão os próximos atos? Como é que o cara - diretor ou romancista – vai terminar o seu texto ou as suas imagens?

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