quinta-feira, março 04, 2010

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL
04 de março de 2010
Coluna das quintas

O CÍRCULO MORTAL
DO
O ESTADO FINANCEIRO

Por Enéas de Souza



O CINISMO DAS FINANÇAS

Os financistas e seus arautos voltam a atacar. Um economista do Goldman Sachs, esses dias na TV, previu para o mundo um crescimento de 4 e pouco para 2010 e de 4 e tanto para 2011. O que em princípio para uma economia que caiu vastamente, crescer 4% não é retornar ao ponto em que estava. Mas, aceitemos sua visão inaceitável, de que o mundo crescendo 4% cresce mais que a média dos últimos anos da pré-crise que foi de 3,5%. Ora, o que a gente viu foi, sem dúvida, um tipo cínico, arrogante, presunçoso, pronto para mentir a qualquer momento, excluindo, sem nenhum pudor, o GS de qualquer culpa. Defendia ardorosa e de maneira cega, o bônus nas instituições financeiras, dizendo que este paga, só e justamente, o mérito dos talentos dos executivos de qualquer banco. E numa reviravolta de trapezista do mercado financeiro, culpava os políticos e o Estado pelas desgraças da vida. Principalmente pela crise (sic!). A gente assistia assim, do outro lado da tela (ainda bem que era do outro lado), um gangster falando, um tipo que talvez ficasse bem num filme como “Onde os fracos não têm vez”. Certamente, alguém que não mereceria uma entrevista, salvo neste caso, para vermos a mentalidade do tipo predador, cuja mente e discurso se eximia de qualquer culpa, de qualquer erro. E se mostrava pronto para uma nova caça.

O LIMITE INTRANSPONÍVEL

Pois aqui está um ponto essencial. As finanças não querem arredar nenhum pé, nenhum passo, pensam que a mundo sem eles seria muito pior. E o velho Keynes que tinha a ironia britânica falava da eutanásia do rentista... E os integrantes desta fração de classe, sem visão nenhuma de economia, a não ser do lucro imediato e do caixa do banco, do bônus e da sua conta corrente, têm, da atividade econômica, uma idéia de anti-longo prazo. Só a valorização instantânea dos ativos financeiros, só o curtíssimo prazo, só o ato de predação é que os motiva “socialmente”. E, portanto, não sabem, nem querem, nem identificam que a economia financeira chegou a um limite intransponível. O que não quer dizer que a economia não possa dar uma crescida, que não possa dar uma levantada. Ela até pode; contudo, de modo efêmero. Já que o jeito como se comportam as finanças, não aceitando nenhuma regulação, não possibilita que possa haver um trânsito para um outro padrão de acumulação de capital. Por quê? Porque permanecer num padrão não-regulado é simplesmente continuar dentro de um padrão que se extinguiu. O que quer dizer que não existe perspectiva de um crescimento duradouro, nem para elas nem para ninguém. Nessa direção é preciso atentar que, de um lado, as inovações financeiras neste modelo tendem a ser limitadas, por suspeita do próprio mercado. Dito fortemente; a securitização precisa ser reformulada. E de outro lado, a crise produtiva navega num mar revolto, sobretudo as velhas indústrias, do tipo automobilístico. Fora desses aspectos, certamente o astuto economista do primeiro parágrafo, fingiu que não viu o conjunto de ativos podres que estão na contabilidade dos bancos e que vicejam no interior do sistema financeiro como bactérias ameaçadoras. Ou seja, a recuperação, se houver, não mudando o padrão da economia vigente, será como uma festa de despedida, um canto de cisne numa noite de trevas.

FINANÇAS VERSUS A NOVA PRODUÇÃO

1 -Uma economia só funciona quando a produção funciona e quando a economia financeira se desenvolve, especulativamente ou não, em cima deste desenvolvimento. Pois nós temos agora uma crise muito forte, é necessário transformar esta economia do automóvel numa economia das tecnologias de comunicação e informação. Primeiro: esta passagem supõe: uma mudança de liderança na dinâmica da atividade econômica como um todo; segundo: supõe a adequação da economia financeira a esta produção reordenada; terceiro: requer uma metamorfose na arquitetura do sistema financeiro, pondo este conectado com o sistema industrial e seus companheiros o comércio e os serviços; quarto: requer que o Estado assuma um comando sobre a economia, principalmente disciplinando o capital, ou seja, regulando a atividade econômica.

2 - E a economia é como um rio. Se suas águas forem represadas, elas vão descobrir um desvio para romper com a barreira. Novas e novas águas, diria o Heráclito, vão emergir. Mas, não tem! O mundo vai ter que mudar. E hoje, agora, será muito mais fácil. Depois, se a resistência for grande, só com rasgões, quando o velho – e o velho hoje são as finanças – terá que dar passagem ao novo. E dar passagem por razões estruturais. Mesmo porque se as previsões deste “humanista” da GS se confirmarem, elas não emplacarão num vôo de brigadeiro, como ele pensa e sugere que vai acontecer. É preciso ver que a produção e os trabalhadores vão fazer pressão para que este inverno econômico passe a ser, ao menos, um inverno brando ou, quem sabe, uma primavera. Carlota Pérez, todavia, fala num novo Verão, numa Gold Age. Não chegamos a esta expectativa. Concordamos, não resta dúvida, com ela, quanto a necessidade econômica, política e sociológica de superar este quadro absurdo que está acontecendo neste momento. A rapina salva pelo Estado e pela sociedade volta-se, como uma fera danada, dentes aguçados e vorazes, num monstro diluviano. Um verdadeiro núcleo da barbárie, para morder e liquidar o Estado e a sociedade.

PORQUE O ESTADO SÓ DEFENDE AS FINANÇAS?

Como estamos vendo, uma das dificuldades no embrulho da economia contemporânea tem o nome de Estado financeiro. Sua presença no cenário político e econômico permitiu algumas mudanças decisivas que contribuíram para o sucesso e hegemonia das finanças. Mas estão no bojo desta estrutura estatal características que são pontos nevrálgicos para a sua sobrevivência:

(1) a transformação da moeda-ouro em moeda financeira;
(2) a construção de um sistema de negociação de títulos financeiros, progressivamente auto-regulamentado;
(3) a fissura na estrutura institucional do Estado, entre um setor econômico (reunindo o Banco Central, independente ou autônomo, e a Fazenda, que garantem as operações do sistema financeiro) e um setor constituído pelos demais ministérios, totalmente subordinado ao primeiro;
(4) a necessidade do Estado para bloquear financeiramente, com recursos orçamentários ou endividamento público, qualquer operação de qualquer instituição que traga uma ameaça de risco sistêmico à economia;
(5) a colocação de títulos públicos para servir ao jogo de acumulação do capital financeiro, em momentos de salvação de instituições bancárias e não bancárias, funciona em detrimento do Estado e da sociedade;
(6) a necessidade de manter o controle da moeda contra a especulação dos capitais privados, para evitar que a ameaça do risco sistêmico se transforme em risco social;
(7) a deterioração da moeda, de um país ou de uma região, encadeia uma sucessão de crises, que segue o seguinte movimento: crise financeira, crise fiscal, crise monetária e crise do próprio Estado, à medida que se evidencia a incapacidade do Banco Central e do Tesouro.

Desta forma, lendo estas notas, podemos ver que existe um fantasma, o fantasma do velho Keynes, rondando o paraíso das finanças. Pois se ele propunha, com toda a sua argúcia e clareza, a eutanásia das finanças, ao se observar a estrutura da relação entre capital financeiro e Estado, o que a gente percebe é que o sistema tem um lado de euforia, mas tem também um ponto de vertigem. É nesta altura que está inscrita a hipótese de uma crise imensa, por uma vocação ao suicídio dos rentistas, pois uma crise profunda das finanças engancha o Estado, o Estado financeiro. Por essa razão, não há saída, este Estado tem que defender fortemente as finanças, sob pena de se ver envolvido na voragem da crise do capital. Mas, uma crise deste coloca obviamente em cheque o próprio Estado. Ainda não chegamos a este ponto, mas o círculo capital-Estado pode entrar numa de trajetória de infindável realimentação.

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